Posso?
É mais uma daquelas histórias simples, que eu gosto de contar, devagar, com muitos detalhes e pormenores, e que nem sequer começa por "Era uma vez..."
Esta começa por uma lembrança, pincelada com saudade.
Lembro-me que parecia meio arrepiado, depois de bem lambido pela 'Cinza', e que a cada lambidela correspondia um tropeção, porque aquelas patas de 3 centímetros, apesar de serem quatro, mal se aguentavam em pé. Os olhitos pretos, arregalados, no meio daquele negrume de pelo, e um miar fininho, esganiçado, que num instante ficava rouco, à força de tanto reclamar a maminha da mãe ou pelo menos o seu aconchego e protecção.
Não era filho único, nem o único todo preto, mas distinguia-se dos outros por duas linhas de pelo menos farto, que lhe iam do bico exterior dos olhos, até ao bico exterior das orelhas. Davam-lhe um ar de reguila, manganão e tratante, e eu achei-lhe piada.
Sendo uma fase algo delicada na minha saúde, a A. uma adolescente em plena fase do armário, com o maridão a sair de madrugada e a só voltar tarde do trabalho, enfim, estavam reunidas todas as condições para aceder ao pedido choroso da filha, que a pé juntos jurava que ia tratar dele, limpar-lhe os cócós e os xixis, dar-lhe de comer, de beber e todas as outras promessas juntas que os cachopos fazem quando querem ter um animal em casa. O baptismo fez-se logo ali, a madrinha foi a dona da 'Cinza' e com uns pingos de água e tudo, crismou-se a criatura de 'Pipocas', que mudou de casa logo nessa noite, embrulhada num cobertor velhinho.
Da aldeia onde nasceu, veio para a cidade e para um apartamento, onde começou a crescer, a fazer asneiras inconfessáveis, principalmente em cortinas, que adorava trepar até ao varão, em edredões a que deliciosamente (para ele, claro!), puxava os fios, e a fazer desaparecer misteriosamente os 'tótós' da dona mais nova.
Quando não me fazia exasperar, era de rir. Bastava acenar-lhe com um deles, para se transformar num super-herói de saltos, acrobacias, correrias desenfreadas, esgadanhadelas em duas patas e demais piruetices, que, pouco a pouco já nem necessitavam da solidez do objecto e se desencadeavam logo que se pronunciava a palavra 'tótó'.
Além disso, sempre foi privilegiado: caminha própria bem almofadada, com manta incluída, WC coberto para lhe respeitar a privacidade, brinquedos próprios e comidinha de marca, indicada pela veterinária, que visitava regularmente por causa das vacinas, das bolas de pelo no estômago e das prevenções de bichezas parasíticas e da qual nunca gostou, especialmente a partir do dia em que entrou lá com duas pendurezas e saiu sem nenhuma. E depois, pronto, eu estava mais tempo em casa, e tornou-se um gato tipo papagaio pirata que até ia à rua de coleira com guizinho e trela vermelha e branca no pescoço, muito bem sentado nos meus ombros.
A única altura em que sossegava era depois do almoço. Dormia a sesta comigo, aos pés da cama e em cima dos meus pés, ou quando lhe dava a mimalhice com força, ocupava o travesseiro do lado e deixava-se cobrir. As posições em que eu e ele acordávamos eram dignas de fotografias, comigo agarrada a ele, ele esticadinho, esticadinho de preguiça, ou aninhado e enroscado no meu travesseiro, por cima da minha cabeça, que tremia com os ronrons fundos de gato satisfeito.
À noite, ao contrário dos gatos livres, ficava na cozinha e à ordem de 'caminha, até amanhã boa noite', repetida com o incentivo de umas festinhas mais prolongadas, lá saltava para a cama dele e sossegava até ao dia seguinte.
Apesar da partida que a veterinária lhe pregou, nunca foi um gato 'maricas'. Muito senhor do seu nariz, não gostava de colos nem de mimos para além da sua própria medida. Esquivava-se aos excessos e mesmo com as unhas aparadas, nunca deixou de as meter em carnes alheias se a coisa não lhe corria de feição. Exigente, também: nunca achou piada nenhuma ao bebedouro de inox, quando podia regalar-se com a água corrente que saia das torneiras do bidé, para as quais chamava a atenção com mios prolongados e olhares dengosos a pedir intervenção humana na arte de as rodar, e a comida, seca, só lhe servia estaladiça, porque ao fim de um dia no comedouro também já estava amolecida.
De vontades em vontades sastisfeitas, foi-se tornando um Senhor Gato, grande, pesado, com um pelo negro, negro, luzidio e macio, esperto, ladino e entendedor da maior parte da meia dúzia de ordens repetidas e exemplificadas, porque um gato é sempre um gato, independente, instintivo, caçador e perseguidor e que à falta de melhor, se entretinha tempos infinitos a jogar com bolinhas de papel de alumínio.
Por razões que agora não vêm ao caso, o 'Pipocas', 'Pipas' ou 'Bébé', deixou de poder estar lá em casa. E como não havia melhor sítio para o ter do que aquele onde nasceu, regressou de armas e bagagens à aldeia, onde chegou, maior que todas as suas irmãs e mãe, mas tão gordinho que não conseguia trepar a uma árvore, quando um dos seus colegas caninos resolvia arreliá-lo e pô-lo na ordem.
A pouco e pouco foi-se habituando ao espaço em que podia correr sem paredes, agilizando os músculos e os sentidos, e logo na 2ª semana, conseguiu a proeza de encurralar durante dois dias e matar ao 3º, uma cobra escondida no meio das pedras do muro.
Foi a prova de fogo a que passou com distinção. Era Gato por inteiro (sem pendurezas, mas pronto...), livre para dormir de dia, em cima da cama da primeira das suas donas, e escapulir-se ao início da noite para divagações, explorações e passeatas inerentes à sua natureza.
De uma delas não voltou. Tão simples como isso. A liberdade que a aldeia lhe trouxe, também o expôs a outros perigos, mas se ele pudesse falar, aposto que não a trocava por nada deste mundo....
Nota: Todas as fotos são minhas e, exceptuando a primeira, têm má qualidade, por terem sido captadas com uma web cam
14 comentários:
Raio, será aquele que atravessa o meu páteo e resolve entrar pela cozinha dentro, sempre que a porta está aberta? O sacana tentou abrir a caixa do queijo que estava em cima de uma bancada. Oh oh vizinha!
E acha que ele ia deixar assim facilmente 'cama, mesa e roupa avada' por vontade expressa dele, nem que fosse para lhe gamar o queijo?
Infelizmente, não e para não ter voltado à casa onde nasceu, é porque algo de não muito bom lhe aconteceu....
Os gatos, o meu ponto sensível; sou completamente doida por estes animais; a última que tiveaté falava comigo, respondia-me e ralhava comigo e amuava ... enfim!
Adorei a história.
Si,
Pois é, os animais para além de toda a simpatia e ternura que nutrem por nós, no ambiente que lhes impomos, necessitam do seu espaço, das suas activides, da sua Liberdade.
Tenho um cão, e vejo a alegria dele, quando o levo para o campo e o deixo á vontade!... Até doi aundo o levo de volta para casa.
tretices em liberdade para Si.
http://tretas-da-vida.blogs.sapo.pt/
Manobras de um gato, muito bem relatadas. Eles são mesmo assim como disse.
A sua presença mantém-se sempre, mesmo após saírem da nossa vida e eu acho que é pela subtileza com que passam por nós.
Não os vemos, mas sentimos e é por isso que ficam connosco para sempre.
O seu Pipocas, teve uma vida livre no fim. Valha-lhe isso ao menos.
Gatinhos!!!
O meu, é o dono da casa toda...
Adivinha quando é para ir tomar banho e aí é que é a grande gaita..
Pobre Pipocas! Livre, mas sem pendurezas? Não há direito...
Bem, só espero que nunca convença ninguém a transformá-lo em príncipe.
Apesar de todos estes "ses", gostei muito da história. Adoro cães e gatos, mas acho a personalidade dos gatos muito mais fascinantes.
Um dia conto a história de uma gata que desapareceu de lá de casa...
Também gosto imenso de gatos. Tive uma adorável e com um percurso que também daria uma interessante história.
Ao contrário do teu, adoeceu. Foi uma valentona até ao fim.
Beijos.
A Nina tambem gosta de beber agua no lavatorio,olha para mim como quem diz quando e que abres a torneira?
Sao um bicharocos adoraveis.
Carlos,
Não deve ter mais histórias de gatos do que eu, isso lhe garanto!!
Agora, o porquê desta certeza, só saberá daqui a uns tempos, rsrsrsr
Miepeee,
Como disse ao Carlos, as histórias de gatos são tantas que não sei se as hei-de contar devagar, uma a uma, ou resumir tudo numa só...
Ainda vou pensar nisso...
P.S. E as sonecas roncadas que o Pipa dormia dentro do lavatório, as lambidelas no nosso nariz quando lhe pedíamos beijinhos e, já na aldeia, se passeava displicentemente pelos móveis da cozinha, matando a sede na água do aquário do peixinhos....?????
A Si pode contar as histórias que quiser, mas quando os protagonistas forem animais e não tiverem happy end, avise.
Já estou aqui a fungar e com os olhos rasos de àgua.
Ainda por cima, conta aqui coisas do Pipoca que o meu Sebastião faz: a de dormir em cima dos meus pés, mas mal me apanha a dormir aí vem ele, devagarinho até ficar com a cabeça na minha almofada e a de beber àgua nas torneiras do bidé. E eu a pensar que era só eu que era maluca ( sem ofensa, claro).
Perdi o primeiro e ainda não me recompus nem jamais o vou esquecer, embora adore o Sebastião, mas pelo menos sei que se foi quando já não havia mesmo mais nada que se pudesse fazer.
Mas perdê-lo assim, como o Pipoca, não quero nem pensar.
Deve ter sido difícil para si.
Beijinhos de mim para Si
Si: Nem tenho essa veleidade, cara afilhada. Só tenho mesmo duas histórias com gatos.
Conchinhas miadas
Publique as outras histórias, Si, gosto imenso de animais, apesar de preferir os cães aos gatos, essencialmente por conhecer melhor os primeiros, mais nada... Como imagina, tive de resistir, muitas vezes heroicamente, às tentativas que os meus filhos fizeram no sentido de ter animais. Então o meu filho é absolutamente louco por animais e nunca teve medo de nenhum, na rua era um autêntico perigo quando era pequeno. É engraçado que agora é ela que faz mais pressão para termos um cão, mas aceita com facilidade as negativas, por motivos óbvios.
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