domingo, 30 de novembro de 2008

ponto da situação # 7


Querido Diário,

Sendo tu um especialista no registo de recordações, não poderia deixar de preencher estas tuas páginas com memórias que me vieram à memória, despoletadas por um Rochedo.

São restos de infância que estavam arrumados a um canto e que, impelidos por outras leituras, saltaram, indomáveis dos seu esconderijos, para, em catadupa, desaguar no meu cérebro, em tempestade enérgica, com a ajuda da água que cai do céu, neste fim de semana.
Falava-se então aqui, sobre comércio tradicional e antigas formas de viver, dos pregões lançados por vendedores de rua, que tanto sabor davam ao vai e vem dos magotes de gente que ocupavam as ruas das cidades maiores. A regressão foi imediata, até ao tempo do meu avô materno, farmacêutico, e da farmácia que ele tinha, onde exercia funções muito diferentes das que reduzem hoje estes profissionais a meros empregados de balcão.
A maioria dos medicamentos, antepassada dos genéricos de hoje, era conhecida por 'manipulados', ou seja, preparados directamente pelo farmacêutico, na altura de os vender e sem marca ou receita líquida para um qualquer laboratório. Havia as hóstias de quinino, feitas uma a uma, com ingredientes rigorosamente pesados numa balança minúscula, os pós de sulfamida, os unguentos, as papas de linhaça com mostarda, aconselhadas para quase tudo, menos comer.
Durante a guerra, muitos foram os talões de racionamento trocados por açúcar, usados para os xaropes da tosse, para os preparados vitamínicos das crianças ou para as pias aldrabices que se faziam para facilitar a toma do óleo de rícino ou de fígado de bacalhau e, no Inverno, o "abafe-se, abife-se e avinhe-se" ainda continuava a ser a principal cura para as constipações ligeiras. Se o caso era mais grave e exigia penicilina, lá ia o farmacêutico de bicicleta, a horas e desoras, dar as respectivas injecções, a casa do doente, ao hospital mais próximo que esgotava o stock, a casa do Sr. Dr. que atendia a Sra. Dna. Fulana.
Na farmácia do meu avô, até havia ainda um frasco enorme, cheio de formol, onde se enrolava uma cobra, a lembrar o velho símbolo grego, que fascinava as crianças e até afoitava algumas a apanhar outras, vulgares que eram nas bouças ali perto, e a entregá-las, em troca de rebuçados.
O farmacêutico era o amigo, o conselheiro, o confidente dos mais travessos, que em loucuras apaixonadas, acabavam com aquilo que, delicadamente, hoje se apelida de 'DST's, o ai jesus das senhoras de nervos em franja a quem era receitado um 'calmante fortíssimo!!!', feito de algumas gotas de água destilada, o aumentador de esperança dos tísicos condenados, que aviava com o mesmo rigor, as pastilhas de açúcar mascavado ou a morfina hospitalar.
Anos mais tarde, a farmácia foi passada. Hoje é tudo diferente, impessoal e sintético. Os sacos de papel foram substituídos pelos de plástico com publicidade, os manipulados abolidos pelos automaticamente herméticos 'blisters', as palavras do farmacêutico substituídas por bulas recheadas de ingredientes incompreensíveis.

Sabes o que resta, Querido Diário?
Apenas e só a recordação do meu avô. A farmácia ainda hoje tem o nome dele.

Até Domingo, Querido Diário.

Beijinhos,
Si

11 comentários:

Patti disse...

A família da minha mãe tb tinha uma farmácia muito conhecida em Lisboa, que depois ficou para ela e para as irmãs, que acabou por ser vendida, mais tarde.

Dela guardo cá em casa aqueles frascos de vidro grosso e fosco com uma tampa pesada de encaixem, tb de vidro. Tenho muitos e de vários tamanhos e hoje servem para guardar as minhas colecções de búzios e conchas.

Bonitas recordações as suas Si. Gostei imenso de ler.

Gi disse...

Que maravilha!
Na Índia, por exemplo, nos dias de hoje, ainda há farmácias assim.

Pitanga Doce disse...

Si, já vi que estes teus posts vão dar o que comentar. Volto amanhã, pode ser?

beijos de domingo

Rafeiro Perfumado disse...

Eu ainda conheço uma farmacêutica que é uma querida para os clientes, sempre e quando estes mereçam. Mas no geral não foi só nesse ramo que a simpatia, a personalização se perdeu.

Beijo.

Si disse...

Patti,
Tenho pena que a farmácia tivesse sido passada. Não deu nem para ficar com um frasquinho de recordação.
Beijinhos

Si disse...

Gi,
Visitei uma em Cuba que era um sonho! Um dia mostro-a aqui.
Beijinhos

Si disse...

Pitanga,
Venha sim. Tenho uma coisita para Si.
Até amanhã, beijinhos

Si disse...

Rafeiro,
Pois não, tudo era personalizado antigamente, até os medicamentos, os tais manipulados!
Mas encontrar-se hoje alguém que tenha uma palavra mais simpática, principalmente numa farmácia, um local onde as pessoas vão mais fragilizadas, infelizmente também já é raro.
Obrigado pela visita.

Anónimo disse...

Vou tentar recuperar, resumidamente, cmentário que aqui deixei esta tarde...
Como deve saber, ainda há muitas farmácias deste género na China ( e na Índia, como lembra bem a Gi).
Em Macau levei muitos prtugueses de passagem pelo território a essas farmácias. recipientes com cobras e outros animaizinhos,recomendados como mèzinhas para doenças várias eram muito apreciado. Mas o que mais cativou alguns homens, foi um licor feito à base de testículos de carneiro, que se anunciava como percursor do Viagar. Não posso confirmar os efeitos, porque nunca experimentei...)
Neste post retrospectivo, arrepiei-me com´as papas de linhaça, o óleo de fígado de bacalhau e de rícino que detestava.
as farmácias foram, durante muito tempo. locais d convívio muito importantes. Tal como no barbeiro, era lá que se iam saber " as últimas" e se organizvam tertúlias .

Si disse...

Carlos,
Na farmácia do meu avô, as novidades eram levadas pelas 'Marias' que lá iam, mandadas pelas Senhoras, à procura da valeriana para o repouso e dos sais para os 'chiliques' e as tertúlias eram mas é uma verdadeira sessão de corta e cose!!

BlueVelvet disse...

E que bom que deve ser passar à porta dessa farmácia.
É a prova viva do que o seu avô construiu.
Beijinhos de mim para Si