quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Big Johnny


Vai-se chamar João.

E nem tinha nada a ver com o Santo, porque a ter, teria de ser António, que se comemora no dia em que nasceu, naquele ano de 1984.

João Pedro.

Já estava decidido o nome, quando espreitou o mundo pela primeira vez, num berro que lhe encheu os pulmões de ar e acompanhou o choro da mãe, feliz pelo nascimento do seu primeiro filho.

Sempre foi anafadinho, rechonchudo, com ar traquina, que o cabelo claro e espetado reforçava. Dos netos o segundo, de rapazes o primeiro, conquistando, por isso, um lugar um bocadinho mais especial no coração dos avós paternos que, ainda por cima, viviam muito perto e se ofereceram para o criar.

Cresceu rápido, saudável e maciço, embora com tendência para um certo excesso de peso, que o divórcio dos pais também não ajudou a corrigir, quando comia um pouco a mais, quem sabe para compensar a tristeza de não os ter juntos.

Não gostava de sopa, não gostava de peixe, dispensava a fruta, mas era capaz de beber um litro de leite, directamente do pacote, e fazer desaparecer num ápice metade da bola de queijo flamengo que, mesmo sabendo da sua gula, a avó lhe comprava e deixava à disposição, no frigorífico, só para ele.

Porque era o neto e para os netos, sem distinção, só servia o melhor, como antes, para os filhos, só o melhor sempre servira.

Apesar do tamanho, João tinha um falar doce, uma conversa meiga e paciente, uns ouvidos atentos às histórias tantas vezes repetidas nas tardes que sempre preferiu passar à beira da avó, enquanto o avô dormia a sesta no quarto ao lado, até porque a escola não era o seu forte e também não gostava de estudar. Chumbou duas ou três vezes, mas nem por isso era posto de parte pelos colegas que avançavam no plano curricular e muito menos pelos mais novos, que se sentiam protegidos por aquele grandalhão loiro, de cabelo cortado à escovinha.

Começaram a chamar-lhe "Big Johnny".

Contavam-lhe segredos, faziam-lhe confidências, pediam-lhe conselhos, colavam-se àquela personalidade afável, calma e ternurenta e partilhavam com ele o gosto pelos graffitis.

A família nunca entendeu muito bem que espécie de passatempo era aquele, que usava sprays de lata para cobrir paredes alheias, nem o Big Johnny também nunca se preocupou muito em explicá-la. Gostava e pronto. Mas, e por princípio, nunca usava espaços novos para lhe fazer de telas, nem tão pouco usava os seus materiais para vandalizar com assinaturas e dizeres incompreensíveis, portões, montras ou paragens de autocarro. Preferia paredes velhas, abandonadas e degradadas, que trazia à vida com os desenhos coloridos que lhe saíam dos esguichos das latas.

Aquela, já ele andava a namorar há algum tempo. Era perto da escola, numa perpendicular estreita à Torrinha, fachada de um prédio em ruínas, antiga fábrica destinada à demolição. Num furo do horário escolar, juntou os compinchas da arte e meteu pés a caminho e mãos à obra.

Depois disso, ninguém sabe muito bem o que se passou. Só que, por razões que nunca se virão a conhecer, subiu à cornija da parede e as telhas envelhecidas cederam ao seu peso, abrindo o caminho para uma queda vertical de nove metros, onde a cabeça chegou primeiro do que os pés.

Foi no dia 28 de Maio de 2003.

O dia em perdi o meu sobrinho mais velho.

16 comentários:

ANTONIO SARAMAGO disse...

FAZES UMA BONITA RECORDAÇÃO DE UM TEU ENTE-QUERIDO.
Infelizmente a sua "traquinice" foi deveras fatidica e é pena que muitas Crianças e Jovens nunca queiram tomar em consideração que as suas Aventuras se podem tornar em desgraça.
Não vou dizer mais, porque não terás vontade que te recordem momentos destes.

Patti disse...

Esta vida prega-nos partidas tão tristes, Si. Nem sei como as pessoas se recompõem e conseguem seguir em frente com tamanhos desgostos.
Talvez tenha sido o seu feitio despreocupado que o fez meter um pé em falso. Mas também não tem importância como morreu, mas sim como viveu e como dele falam e o recordam. É esse o único legado da vida; o que deixamos aos outros e ele deixou muitas lembranças boas, como pude ler.
Um beijinho grande.

Vera disse...

Não encontro palavras para comentar este teu post, mas queria que soubesses que estive cá. Que gostei de conhecer o Big Johnny.Que gostei de saber que ele foi um artista. Que grafitava. Eu gosto de graffiti. Que te envio um beijo enorme, num coração grafitado.

De dentro pra fora disse...

Será então um
"até sempre ao teu Big Johnny"

Homenagem bonita que a tia soube fazer..

Tretoso Mor disse...

Si,

Já tinha lido o teu Post logo a seguir à meia-noite. Não consegui comentá-lo.

Continuo sem conseguir escrever mais do que isto.

Tretices sentidas para Si

Gi disse...

Custa muito mais ver partir seres na flor da idade e com uma vida pela frente.
Johnny be good e olha pelos que cá deixaste e te amam.

BlueVelvet disse...

Já tinha tentado comentar este texto, mas é sempre muito difícil, porque por mais palavras bonitas que se deixem, nada pode colmatar a perda ou consolar a dor.
Por isso deixo só um enorme e apertado abraço

Si disse...

António,
São acidentes, acontecem, a gente sabe que sim, mas nunca pensamos que nos possa tocar a nós.
E hei-de lembrá-lo sempre.

Si disse...

Uma partida cruel, sim, Patti.
Uma paz de alma, que nunca fez mal a ninguém, que adorava animais, tanto como adorava pessoas. E houve quem nunca se recompusesse. O avô, que hoje repousa a poucos metros dele, foi um deles.
Beijinhos

Si disse...

Vekiki,
Obrigada.
O Big Johnny nunca será esquecido.
Beijinhos

Si disse...

De dentro para fora,
Nunca consegui despedir-me dele. Nem hoje ainda consigo, mesmo que seja um "até sempre". A raiva é maior do que eu.

Si disse...

Tretoso,
Eu sei. Também não é preciso.
Obrigada

Si disse...

Gi,
Gostei do seu comentário. Fez-me sorrir esse Big Johnny be good. É exactamente como eu o imagino, a tomar conta de nós todos e a fazer companhia ao avô.
Beijinhos

Si disse...

Velvet,
Não há mesmo, pois não?
Obrigada pelo seu abraço, azul, da cor preferida dele.
Beijinhos

Anónimo disse...

Já cá tinha passado, mas sem capacidade para comentar...preferi fazê-lo depois a sesta.
Eu sei bem como são esses dramas. Tive dois irmãos que desaparceram assim, de repente, numa idade em que tinham futuros risonhos pela frente.
Conseguiu escrever sobre o assunto- e de uma maneira tão sentida e comovente- o que é um bom passo em frente para curar a dor.
Conchinhas adocicadas

Si disse...

Carlos,
Não é justo, pois não?
Tinha apenas 19 anos e era um ser humano maravilhoso.
Prendinhas de maresia