quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

marca(dores)


Abriu a carta há muito recebida e posta de lado. Ligou a luz do candeeiro da mesinha de cabeceira, pôs os óculos de ver ao perto e focou as linhas atiradas para o papel, com tanta raiva, que havia traços de tinta esparramada, pingos de uma escrita sem vergonha, borrões carimbados com a violência de lágrimas em soluço. Leu tudo até ao fim, sem parar, sem hesitar em nenhuma das vírgulas que lhe pediam uma pausa e, tal como antes, teve a certeza do ponto final que a vida lhe tinha posto à frente, sem que tivesse tempo de levantar nenhuma interrogação. A sua reticência em abrir a carta, durante tantos anos, tornava-se claramente sublinhada: não pretendia reviver a exclamação daquele grito de revolta a que não tinha dado ouvidos, porque era inútil. Tão inútil como usar um travessão para riscar de vez a dor da alma.

10 comentários:

Anónimo disse...

Passo só para avisar qu hoje é dia de festa cá no bairro! Vá ver porquê ao Rochedo.
voltarei mais tarde para comentar.

Gi disse...

Nesta altura conseguiu, finalmente, abrir parêntesis, para, entre aspas, "deitar contas à vida".

Patti disse...

Há 'nãos' que custam anos para se ter a coragem de os ouvir e até de os dizer.

Rafeiro Perfumado disse...

Eu fiquei assim quando recebi a carta das Finanças para ir pagar a Contribuição Autárquica...

Miepeee disse...

Por mais pontuacoes que se possa colocar numa frase, um Nao e sempre um Nao, duro de se ouvir , ler e muitas vezes de se dizer.
Beijinho.

paulofski disse...

Por vezes ter coragem é uma simples questão de tempo. Tempo de reflectir, tempo de assumir, tempo de riscar, rasgar e deitar fora a dor, secar as lágrimas e orgulhosamente voltar a levantar o queixo.

Vera disse...

Si, no Vekiki está um Desafio para si :)
Vá lá buscá-lo e ofereça-o a quem melhor o souber aceitar :)

BlueVelvet disse...

É que às vezes nem vale a pena abrir a carta. Afinal já se sabe qual o conteúdo.
Magnífico texto.
Beijinhos de mim para Si

De dentro pra fora disse...

Não podemos fugir eternamente da verdade nua e crua, tal como não podemos riscar a dor também não conseguimos apaga la apenas ir suavizando talvez...

1/4 de Fada disse...

Magnífica metáfora. Aqui está bem clara a razão das más notícias deverem ser dadas de viva voz e não por escrito - quando se revive o mmomento a dor é menor.