sexta-feira, 24 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível # 7


Aos gritos e vociferando ameaças, os trabalhadores da quinta foram ganhando terreno, instalando-se perto do Solar, em círculos vigilantes à volta de fogueiras alimentadas noite e dia pela lenha e pelos calores de espíritos incitados. Exigiam propriedade sobre, exigiam direito a, exigiam com um verbo até ali nunca conjugado: reivindicar.
Lá dentro, Joaquina dividia a alma em dois, rachada pelo meio do amor que tinha à sua família de sempre e do carinho que nutria por grande parte dos que estavam ao relento, na sua maioria jovens que tinha visto nascer e crescer, alguns acabados de voltar das Colónias, mais velhos e mais pesados no olhar, vazio já das inocências arrancadas a G3.
Em silêncio, a mãe de Margarida enchia as malas com roupa e os baús com partes da casa escolhidas à sorte, pegadas e levadas pelo instinto momentâneo e irreflectido de quem executa uma tarefa automaticamente, misturando, no mesmo fundo, pratas antigas com copos de cozinha saídos no 'Juá'. E ao jantar, que ninguém comeu, a sentença proferida pelo pai, revelou, por fim, o destino da família, a concretizar já nessa madrugada: partiriam para o Brasil, levando o que pudessem, para recomeçar, nas terras férteis de Vera Cruz, antes que o inverno das vidas de cá se instalasse, impelidos pela primavera que por lá despontava.
Muda e estraçalhada pelo peso da notícia, Margarida tentava reunir as ideias. Deixar a casa, deixar a sua vida, deixar Joaquina, deixar tudo para trás, parecia-lhe tarefa impossível de concretizar, muito menos em poucas horas. A pouco e pouco, o pouco ou nada que lhe tinham explicado sobre a situação do país, começava a fazer sentido, principalmente através de uma outra palavra que acompanhava os gritos dos trabalhadores acampados no pátio do Solar: revolução. Afinal, era o que lhe pediam. Que revolucionasse por completo a sua vida, cortando, para sempre, com as suas origens e lembranças. E não, não queria ceder. Para espanto de todos, enfrentou o pai, a mãe e os irmãos. Não valeu a pena gritar, mandar, ameaçar, pedir, suplicar. Estava decidida a ficar e mudar-se-ia para a casa de Joaquina, onde moraria até arranjar trabalho. E que nem lhe falassem em incertezas. Nada era mais incerto para ela do que atravessar meio mar e ir desaguar na vida de um brasileiro qualquer, desterrada numa roça, a vegetar em cacau ou bananas durante os quarenta ou cinquenta anos seguintes.

(acaba amanhã)

17 comentários:

salvoconduto disse...

Os deuses estão contra mim, não pude seguir a história. Hei-de cá voltar quando me deixarem e com calma.

ANTONIO SARAMAGO disse...

ESTÁ AQUI RETRATADO E MUITO BEM, o que foi a ignorância do Povo Português, das pessoas que pensaram logo em se apoderar das Propriedades alheias.
Era tudo á vontade do fréguês, o pior foi quando viram que não tinham capacidade para nada a não ser continuar a trabalhar para um patrão.
Onde estão as Cooperativas que os Comunistas formaram?
Que desenvolvimento levaram as propriedades roubadas?
Quantos foram depois devolver o que tinham roubado e pedir novamente que os aceitassem?
Era tudo isto a Reforma Agrária?
Não há dúvida de que o nosso Povo não sabia mesmo o que queria e se deixou levou por meia dúzia de parasitas...

pedro oliveira disse...

A foto não podia estar mais focada.se não conseguir amanhã volto na segunda para ler o happy end.
bjs

BlueVelvet disse...

Pronto, agora é que a história desandou de vez.
Onde raio vou eu meter a amiga?
Sim, que ela para mim não pode desaparecer.
Beijinhos de mim para Si

Gi disse...

Como sabe, amanhã, não estarei na net para ler o final.
Amanhã é sobreutdo um dia de que não gosto MESMO.

É agora que devemos enviar-lhe um final?
Só por ser para si até alinhavo umas curtas e pobres linhas. :)

paulofski disse...

Si, vou confidenciar-lhe que estou a juntar os seus textos, um copy paste à descarada, amanhã vou imprimir tudinho, ler tranquilamente e então escrever.

Beijinhos

Bom fim-de-semana

Si disse...

Salvo,
Vou deixar o final publicado até 2ªa feira, para que todos tenham o fim de semana inteirinho para o digerir.

P.S. Então e o chá de hortelã não fez efeito??

Si disse...

António,
Naqueles dias de loucura, acredito que ninguém conseguisse pensar direito, nem tão pouco saber exactamente o que fazer.
40 anos não se mudam de um dia para o outro e a prova disso é que 35 anos depois, Portugal tem uma política vergonhosa, um povo preguiçoso e uma produção de bens ridícula, que nos deixam, tal como antes, muito distantes dos restantes países da Europa.

Si disse...

Pedro,
É que nem duvido, vizinho!
E então uns palpites? Não se arranjam por aí??

Si disse...

Velvet,
Não sei de nada!
Desde ontem que não consigo que as personagens me obedeçam, tem sido uma luta terrível, nem sei, tão pouco, se amanhã não decidirão ir todos para as comemorações e deixar-me com o blog fechado a 7 chaves!!

Si disse...

Gi,
Por quem sois!
O meu humilde mail cá estará para as receber!
Beijinhos

Si disse...

Paulofski,
Copie e paste à vontade, sim??
rsrsr

Justine disse...

Só hoje aqui cheguei - mas mais vale tarde que nunca, não é?
O teu conto, lido com a pressa que não merece, vai ter nova leitura, prometo:))
Mas já me "agarrou"...
(obrigada pela visita)

Si disse...

Justine,
Bem vinda e obrigada pelas palavras!

P.S. Se quiser ler tudo, tem mesmo que ir lá abaixo, ao post da colher de açúcar, para chegar aos links do início desta história, que andava 'pendurada' quase desde o início do blog.

Anónimo disse...

Estou deliciado com esta história. Não sei quando poderei ler o fim, para fazer o comentário, mas fiquei cheio de curiosidade. Tenho um palpite, mas pode dar para ambos os lados. Fico a torcer, para que opte por aquele que masi sentido dará ao 25 de Abril.

Si disse...

Carlos,
Ai o que foi dizer.
Curiosidade, num escorpião??
Isso é corrosivo, Jesus!
Ó padrinho, vá para Buenos Aires descansado que se quiser, depois até lhe mando o final por mail, credo!

Patti disse...

O nosso 25 de Abril não terminou ainda e acredito que nunca terminará.

E a minha versão já seguiu.