Margarida reuniu os poucos pertences que lhe diziam alguma coisa, daquele Solar onde o mundo girava dentro dos seus aposentos e entrou na casa de Joaquina com uma pequena mala de roupa. Afinal, a casa era exígua e não seria prático nem sensato impôr a sua presença de uma forma ostensiva, nem tão pouco quereria transportar consigo o que pretendia esquecer.
Como antes, quando regressava do Colégio, Joaquina recebeu-a de braços abertos, num aconchego forte, de fazer desejar ficar aninhada no seu colo para o resto da vida, levantando um muro protector à volta da sua menina, que, agora, mais do que nunca, continuava a ver como sendo sua.Só quando, à noite, no quarto espartano que ocuparia a partir daí, Margarida tentou adormecer, se deu verdadeiramente conta das mudanças profundas que a sua teimosia em ficar iria provocar; convicta de que teria de decidir rapidamente o que seria o futuro e porém tão insegura das consequências das suas próprias atitudes.
No dia seguinte, acordou sobressaltada com mais gritos e vozes exaltadas. O Sr. Jaime, que deixara de ser capataz na quinta, no momento em que os donos tinham partido, mas que ainda não tinha consciencializado o facto, tentava impedir que um grupo de trabalhadores entrasse dentro do Solar para se apropriarem dos bens que por lá teriam ficado abandonados. Sozinho, pouco poderia resistir às invectivas dos seus ex-subordinados, que agora cresciam em razões inflamadas, pelo que viu Joaquina sair pela porta fora a apelar ao bom senso daqueles que conhecia desde catraios de cueiros sujos; Margarida seguiu-a, logo reconhecendo no líder do grupo, a figura alta e magra de José.
Ó Zézito, tu devias ter vergonha nessa cara, ouviste, meu desgraçado?? Agora atiras pedras a quem te deu de comer ainda tu nem sabias o que era fome e tanto ajudou o teu pai? perguntava Joaquina com as mãos levantadas à altura da cabeça. Tem juízo, rapaz, que já passaste e fizeste passar por tanto, que tu, melhor do que ninguém, devias saber o que é castigar quem nunca fez mal nenhum, seu desmiolado!!
Mas José não desistia e caminhava a passos largos para a entrada principal, tentando forçar os portões, abanando-os com força. Tome. Se quiser entrar, escusa de estragar. Eu tenho a chave. Margarida estendia-lhe o molho das chaves do Solar, enquanto, atrás de si, se fazia um silêncio incrédulo. Menina! exclamou Joaquina, É a sua casa, onde nasceu, não se pode... Deixa, Joaquina, quer queiramos, quer não, iam acabar por entrar. Melhor que o façam pela porta da frente, sempre é mais digno do que parecerem ladrões vulgares. E entregando o chaveiro nas mãos de José, virou costas e desandou.
Serviram-se do que puderam e quiseram. De faqueiros a medicamentos, de toalhas de mesa em puro linho à televisão e ao rádio da sala, transportados para o café da vila, onde passaram a reunir-se para ouvir as notícias do RTP e do Rádio Clube Português.
José quis devolver as chaves, Margarida não aceitou, num desprezo furioso e sentido. Que ficasse com elas e lhes fizesse bom proveito, já nada havia naquela casa que lhe dissesse alguma coisa, atirou, fechando-lhe a porta na cara.
Foi o início da perseguição; José não admitia ser menosprezado por uma mulher, Margarida não admitia a falta de consideração e de respeito, a revolta demonstrada contra quem nada tinha feito para a merecer. Uma raiva mútua, alimentada de cada vez que os seus olhares se cruzavam, no caminho dela para a carreira que a levava até à cidade vizinha, onde dava meia dúzia de explicações de Francês.
Um dia, ele obrigou-a a parar o seu passo apressado. Colocou-se à sua frente e olhou-a de alto a baixo, reparando nos pormenores das golas e dos punhos da sua roupa a ficar desgastados, nos sapatos a ficar cambados. Com um ar de riso trocista, roubou-lhe, de repente, um beijo na boca e nem o sonoro estalo que recebeu como resposta lhe tirou o ar gozão. Pelo contrário. Antes de a deixar, perplexa, no meio da rua, ainda teve a lata de lhe segredar ao ouvido: Aprenda, Menina Margaridinha, que a vida não é ficar fechada num quarto, com uma criada a mudar-lhe as fraldas. Se quer liberdade, tem de a conquistar, como nós fizemos!
Joaquina nunca lhe perdoou a desfeita com a sua menina, nem tão pouco compreendeu quando, rendida pela falta de um trabalho para o qual nunca se tinha preparado e pelas investidas cada vez mais frequentes e agressivas de José, Margarida acabou por sair da sua casa, aceitando, assim, as consequências da sua impulsividade; pôs de lado o orgulho e anuindo juntar-se a ele, numa união de facto, porque a instituição do casamento era reaccionária, acabou por lhe dar dois filhos, que nunca chegaram a conhecer avós nem tios e que hoje ainda sabem de cor as histórias da prisão e libertação de José Pires, herói revoltoso da reforma agrária em Vila de Cima.
9 comentários:
Não é que seja adepto dos finais felizes, mas este por ser demasiado retorcido, não compro.
Abreijos.
Margarida bem tentou lutar por aquilo que seus Pais tinham abandonado, mas eram eles que estavam certos porque seria impossivel resistir á Cambada de Hipócritas, mas ela coitada pensou que conseguia vencer e lutou até poder.
Agora fico na dúvida;de quem eram os filhos de Margarida?
Desse tal José que tanto mal lhe fez?
Coitada da Margarida!!!
Salvo,
Também não vendo, prontosss!
Eu gostei, pronto!
Um final muito possível e muito realista nas suas características e traços machistas, tão representativos da sociedade pré-25 de abril, como na de hoje.
Os homens mudaram muito pouco. Ou nada mesmo.
Infelizmente.
é um final um pouco amargo, como se não houvesse amor nessa união, Si...
Na verdade até conheco algumas historias ,mas todas acabam mal;)))
em geral.... não gosto de finais...
Um final muito possível naqueles tempos conturbados, e envolvendo uma mulher, que apesar de tudo, não me parece que alguma vez tenha sido dona do seu destino.
Beijinhos de mim para Si
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