quarta-feira, 22 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível # 5


Foi Joaquina que lhe falou, um dia, sobre o filho do Augusto Pires, um mancebo de nome José, que tinha sido preso ao tentar passar a salto a fronteira para Espanha, para fugir à guerra e tentar em França uma sorte melhor da dos seus pais, ambos presos também, mas à dureza dos turnos na fábrica de fiação. Entre um ponto e outro, foi sabendo mais pormenores da vida daquele casal, que agora passava dificuldades e pela vergonha de terem sido 'dispensados' do trabalho, ao fim de trinta e muitos anos agarrados às lançadeiras de metal que furavam mãos, às lãs que cortavam dedos, aos pós que irritavam tosses secas de brônquios entupidos.
A do Gusto, então, como lhe chamavam na Vila, estava num desgosto só, a sumir-se de dia para dia, encovada, amarelada e seca, de olhos sempre inchados de chorar pelo filho, pela miséria a que tinham chegado, de revolta com a vida, que um dia resolveu acabar com o remédio de escaravelho, bebido até à ultima gota, para ter a certeza que não voltaria. Ao enterro só foi o viúvo e o coveiro, o resto dos vizinhos espreitou pela janela, mas benzeu-se e rezou pela alma dela só no recato de cada casa. Com a mulher morta e o filho preso, Augusto viu-se sózinho, sem trabalho e sem dinheiro nem para comer. Margarida, condoída pela história que Joaquina lhe ia contando, e à socapa dos pais, disse-lhe para começar a pôr mais uma mão de arroz no tacho, mais água e couves na sopa, mais toucinho e galinha no cozido, mais farinha e fermento na massa do pão que cozia, dia sim, dia não, e levar pelas traseiras, por trás do tanque e do espigueiro, pelo caminho do Poço Quebrado, até ao casebre do homem.
Augusto ficava embaraçado pela gentileza, queria sempre recusar as ofertas, corado de uma vergonha funda, pelas reviravoltas da sua existência. Vá lá, 'Ti Gusto, não se amofine, é a Menina Margarida que lhe manda, alguém tem de cuidar de si, homem, para que cá esteja quando o Zézito sair da cadeia. Já viu o que é o menino ficar sem mãe nem pai, assim duma assentada? Ó 'Quina, tu não insistas, mulher, que eu não posso ficar a dever favores àquela gente. Não tenho como pagar, tu não entendes? 'Ti Gusto, faça-me lá essa fineza, não seja casmurro, senão a Menina Margarida zanga-se comigo; a não ser que não lhe caia no goto o pãozinho que hoje amassei, querem lá ver? Joaquina ia desembrulhando o farnel para cima da mesa. Olhe, se vocemessê não aceita, vai prás galinhas, que amanhã 'tá azedo e ninguém no come. E a sopa também, que o caldo tem que ser fresco. Só se aproveita o toucinho e então, já que não quer, levo de volta...Ó 'Quina, pronto, deixa lá ficar o pão e a sopa. Se é para deitar à criação, 'tá bem, aproveita-se... E o toucinho? Vai ou fica? Olha, seja pela tua alma, 'Quina, se há-de ganhar ranço em casa de quem só come fevera, deixa-o aí, que meto um naco no pão, e a sopa assenta-lhe em cima. 'Tá bem, 'Ti Gusto, que seja pela minha alma então. Já me vou. Ó 'Quina.... Sim? Diz à Menina Margarida que lhe agradeço e que também é pela alma dela, óvistes?
De farnel em farnel, a sobrevivência diária de Augusto ia sendo garantida, se bem que as mazelas marcadas em ossos vergados sobre o tear, o iam corcuvando e entortando as costas e as mãos, que mais pareciam, agora, bolas de dedos grossos, que o reumatismo articular deixava irreconhecíveis. Só a esperança de ver passar os dias em direcção à libertação do filho lhe fazia brilhar os olhos, baços que estavam das muitas lágrimas choradas em silêncio, só a visão da face corada de Joaquina o fazia ter a tal da esperança de ainda o ver antes de morrer.

No início do mês de Março, Augusto começou a definhar....

(continua amanhã)

9 comentários:

pedro oliveira disse...

então até amanhã.estou a gostar.

Gi disse...

Estou a adorar, como sempre.
Si não sei se vou conseguir responder a este desafio.
Para escrever baboseiras, mais vale estar quieta e esperar por bloggers que escrevem t~~ao bem, mas tão bem, que só podem abrilhantar esta sala de baile.

A mim, pelo menos, a Si dá-me um grande baile. :)

Patti disse...

Já se está mesmo a ver que o tal do mancebo se vai apaixonar pela Margarida...

Si disse...

Gi,
Quem vai escrever sou eu, a partir de ideias que me lançarem, em tópicos, ou em pequenos textos e até posso misturar proveniências.
Por isso, 'bora lá a 'enGInhocar' possíveis finais!!!!

Si disse...

Patti,
Será????

Não perrrrca os prrróximos episódios dji 'Crrrrôônicas de um Tempo Impôssssssíveu'...

(Nem eu sei o final, calha bem!!!)

BlueVelvet disse...

Com as voltas que isto leva, não sei se consigo imaginar um final.
É que a cada dia imagino um diferente.
A ver vamos.
Beijinhos de mim para Si

Si disse...

Velvet,
É simples...
Mande todos!!
rsrsrs

1/4 de Fada disse...

Estou a gostar muito do caminho que está a levar a história. Amanhã cá estarei.

paulofski disse...

Texto a texto a faísca eleva-se. Qual será o final, afinal?