quinta-feira, 30 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível - Final da Patti


texto integralmente da autoria da Patti

E foi nesse inverno que a conheci. Isto é, já a sabia de vista desde sempre, mas nunca lhe tinha dirigido a palavra, ou ela a mim. Eu era uma simples miúda, humilde e com pouca instrução, filha de um dos muitos trabalhadores do pai dela e o meu papel ali, não era conviver ou misturar-me com quem não devia, mas sim ajudar a minha mãe nos trabalhos da casa e cuidar dos meus irmãos. Não passei da terceira classe, mas a minha professora continuou a ensinar-me tudo o que sabia, aos domingos de manhã, mesmo antes da missa.

Depois dela falar com os meus pais, sobre a minha esperteza e queda para os livros, passei com distinção no exame da quarta classe e consegui ainda, acabar o liceu. Mas nunca soube o que era brincar e muito menos, o que era viver como a Margarida vivia e deitar tudo a perder. Apesar de uma existência pouco feliz até ali, a Margarida viveu sempre no conforto, amparada pelo dinheiro da família, pelo amor da Joaquina e pouco ou nada, sabia das nossas dificuldades diárias; quantas horas trabalhávamos, o que comíamos, o que vestíamos…quem éramos.

Menina protegida, optou por recolher-se no seu canto, atirando responsabilidades ao desgosto e à saudade da partida da Sara em vez de reagir e assim viveu, prostrada e sem motivação. Ora eu e todas como eu, não tínhamos cá tempo para amuos, fanicos e tristezas. Ou se tínhamos, não sabíamos que podíamos ter. A Margarida só acordou para a realidade do que a rodeava, quando a Joaquina lhe falou da família do Augusto Pires, irmão da minha mãe.

Se calhar, foi isso que a salvou, pois o povo não esqueceu a ajuda que ela dera ao meu tio, nos seus últimos tempos de vida. Mas as minhas gentes mantinham a desconfiança em relação a ela, afinal, para além desse generoso auxílio, ela nunca demonstrara qualquer preocupação ou interesse connosco e esse rompante, de ir viver com a Joaquina e não seguir com a família para o Brasil, não nos revelava qualquer coragem, mas sim, muita imprudência e ingenuidade, próprias de quem está habituada a tomar decisões, sabendo que haverá sempre uma rede que lhe sustente a queda. Não sei se ela pensou, que ia continuar a ter a vida facilitada, apaparicada pelos mimos e atenções da Joaquina. Nem nunca lhe perguntei, mas se pensou, tirou rapidamente o cavalinho da chuva. A Joaquina era pobre e nunca tivera nada de seu, a não ser a dedicação infinita à família dos patrões.

O pai da Margarida tinha-lhe deixado muito pouco antes de partir, pois os seus bens não seriam vendidos assim de repente e ao desbarato, era necessário esperar pela acalmia e pela estabilidade política, para auferir algum lucro e além disso, ele tinha uma família para sustentar e uma viagem dispendiosa a caminho. Estou farto dos teus chiliques e dos teus caprichos de menina mimada, gritou ele furioso, levantando a mão para a mãe da Margarida parar de chorar. Detestava pieguices, raios partissem as mulheres! Fica se quiseres. Toma, vende. É só isto que te posso deixar. E passou-lhe para a mão o relógio de ouro que fora do seu avô. Aprende a viver com o que terás a partir de agora e valoriza-o. E foram-se.

Acredito que os primeiros tempos tenham sido muito difíceis para ela. Os atributos de menina prendada, como bordar, tocar piano e falar francês, não lhe serviam de nada na sua nova situação e a nós muito menos, até nos estorvava. Tudo na vida rural, por incrível que vos possa parecer, era para ela uma verdadeira novidade. Como era possível, que uma rapariga nascida e criada numa propriedade que no fundo lhe pertencia, com dezenas de trabalhadores, que sustentavam a sua família, não entendesse nada de nada?, dizia o povo à noite na taberna.

Quando a Joaquina nos apresentou, não sei qual de nós as duas ficou menos à vontade, se eu, por continuar a vê-la como a patroa da casa grande, se ela, envergonhada com as perguntas da Joaquina, é a Elvirinha do Chico, menina, cunhado do Augusto Pires. Não te lembras dela? Nasceu aqui e também era amiga da tua Sara. Costumava vir à cozinha, para eu lhe dar os restos do jantar, para levar à família, que são uma data deles. Até eu fiquei incomodada com a conversa da Joaquina. A Margarida então, quase que me pediu desculpa com o olhar baixo, sem jeito, preso no chão. Não fazia ideia de quem eu era, nunca ouvira falar de mim, nem do meu pai que trabalhava para o dela há mais de trinta anos.

Primeiro ensinei-a a tratar da horta, plantar e colher tudo o que era necessário, para manter a sobrevivência de todas aquelas famílias, que ficaram a explorar a propriedade dos patrões e a usufruir dos lucros daquilo que cultivassem e conseguissem vender. Era o acordo do patrão com os seus empregados. Sempre fora autoritário e duro com eles, mas igualmente muito justo. Mandou chamar o meu pai. O solar fica fechado, mas os terrenos não se podem perder. Quanto a eles, continuam a ser da minha família, mas entrego-vos para que cuidem bem das terras, como sempre fizeram e tudo o que plantarem e colherem é vosso. Está tudo aqui escrito e assinado neste documento que te deixo, Chico. Qualquer assunto, tratas com o meu advogada, lá na vila. É tudo o que posso fazer no momento. Se um dia eu regressar, voltaremos a falar e vocês não serão prejudicados neste nosso trato, isso vos garanto, que sou homem de palavra.

E assim foi, formaram uma cooperativa, colocaram os problemas na mesa, resolveram as decisões a tomar e entregaram-se ao trabalho naqueles campos a perder de vista, onde eu lhes levava o farnel todos os dias. A Margarida, quis ajudar-me nas entregas da comida e pediu para a Joaquina a ensinar a cozinhar. E até que nem se deu nada mal, não senhora! A rapariga até tinha jeito para a coisa. Juntas, preparávamos as refeições para toda aquela gente, que ao meio-dia já estava esfomeada e afianço-vos, que a tarefa era bastante complicada e muito cansativa, mas ela portou-se à altura. Já estou a descansar e a bordar paninhos inúteis há muitos anos, agora quero e preciso de contribuir e sentir-me útil. O meu pai tinha razão quando me disse, que vivesse com o que tivesse e que lhe desse valor. E o que tenho agora é isto: trabalho.

E foi numa dessas deslocações na carroça da quinta, onde todos os dias sem excepção, transportávamos o farnel ao pessoal que estava na lavoura, que a minha amiga Margarida e o meu primo José Pires se cumprimentaram pela primeira vez.

Novos ventos, novas vidas, novas expectativas, novas promessas, novas canções, novos sonhos …Muitos deles cumpridos mas ainda, muitos e muitos mais que faltam cumprir.


Adenda: Esta maratona de finais deixou-me exausta. Até dia 5, vizinhança!!

Adenda 2: Mas amanhã, ainda há a surpresa prometida, ouviram???

4 comentários:

Gi disse...

Histórias emPattizantes e que me fizeram, desde que a conheci, tornar-me empaticamente ligada a ela, quase siamesicamente.

A seguir conheci a SI, mas não há trigémeos siameses, há?

Si disse...

Gi,
Nunca se sabe, nunca se sabe....!!

pedro oliveira disse...

Realmente este blogobairro é impar.Até dia 5 e porta-te bem!!

Patti disse...

Foi um prazer, Si.