quinta-feira, 5 de março de 2009

mulheres do mundo # 3




A infantaria estava a postos, para entrar em acção logo a seguir aos archeiros, alinhados em quatro filas cerradas. Empunhavam setas de pontas afiadas e temperadas na forja do ferreiro do exército, capazes de perfurar facilmente o couro das túnicas de combate dos soldados apeados das forças inimigas, lançadas por arcos esticados com a perícia de longos anos de treino e dedicação.
Ao primeiro toque do tambor, o céu escureceu e o silêncio da manhã pouco desperta desfez-se num silvo de ares rasgados pelo voo de milhares de disparos simultâneos, seguidos por gritos e lamentações de feridos de morte, que logo se misturaram com exclamações de frémitos raivosos por actos heróicos e corridas desenfreadas em direcção à luta corpo a corpo.
Espadas, lanças, maças e tonfas, arremessavam-se à esquerda e à direita, penetrando em corpos protegidos por indefensáveis armaduras e elmos, espirrando o rubro de vidas ceifadas, espalhando-o e misturando-se com a lama calcada. O tropel dos cavalos dos carros de combate juntou-se ao magma de sons e à fúria da batalha, empurrando as fileiras de escudos e obrigando-os a recuar, esmagados pelo ímpeto da segunda vaga de guerreiros. No meio deles, numa montada vigorosa, uma voz de comando bradava ordens, impelia coragem aos seus subordinados, refazia estratégias e o corpo avançava de sabre em punho, escorraçando o inimigo. Do outro lado do campo, o repicar frenético do sino, anunciava a debandada, a retirada dos derrotados, a fuga sem glória e sem honra, a vitória, enfim, do exército de Ming Yungyen Li.
No final, contavam-se os mortos, transportavam-se os feridos até às tendas dos médicos, que se apressavam em ferver águas, ebulir folhas, juntar-lhe raízes, seguindo escrupulosamente os ensinamentos do Canôn Secreto, o pai de todos os livros da medicina chinesa, e por último, enviavam-se os batedores para reclamar os despojos de guerra, que iriam aumentar a fortuna do reino de Tsin.
De regresso à tenda, Yungyen Li desapertou e deixou cair no chão a armadura de tom castanho, presa por tiras vermelhas, a túnica e as perneiras cor de púrpura, pousou o chapéu castanho, amarrado com um laço vermelho e sentou-se a meditar, oferecendo incenso para agradecer aos Deuses a sua vida poupada e a vitória conseguida. Depois, lavou as mãos na água da bacia de madeira, deixando-a tingida de escarlate, refrescou o rosto suado e, finalmente, deixou afundar todo o corpo na tina de metal, onde já repousavam pedaços de cinabre e âmbar para relaxar os músculos.
Não era a primeira vez que Yungyen Li, filha primeira do General Ming Wang Chi, escapava à morte por um triz. Logo que nascera, a sentença de ser rapariga, que devia ter nascido filho varão, empurrou-a para um quase sacrifício nas mãos do próprio pai. Valeu-lhe a intervenção do seu grito poderoso, o mesmo que se ouvia hoje sobre todos os ruídos das ferozes batalhas, de quem se recusa a morrer, apenas por ser mulher.

8 comentários:

Devaneante disse...

Mais uma vez muito bem escrito! Mas confesso que este texto me deixou triste...

Sempre detestei a guerra. Bem sei que todos a detestam, ou pelo menos todos dizem detestá-la, incluindo aqueles que a fazem. Bem sei que muitas vezes é um mal necessário. Ainda assim é um mal! Um mal que me faz mal só de o saber, mesmo nunca o tendo sentido na carne.

Em todo o caso, e apesar desse meu sentimento, o texto está muito bom e, assim me parece, o essencial não está na batalha mas sim na tenacidade de uma mulher com a coragem para se afirmar num mundo normalmente reservado ao 'sexo forte', como tem sido costume chamar-lhe.

Anónimo disse...

Agora não tenho tempo para ler. Venho só avisar que vai haver golpe de estado organizado On the Rock.
A Directora -Geral dos Impostos e Cobranças Coercivas vai ser demitida. Parace-me que mora aqui, não é?

salvoconduto disse...

A guerra não acaba aqui! Sim que eu vou juntar ao CR na luta contra a tirania e as infiéis. Às armas!!!

pedro oliveira disse...

Um conjunto de textos que enaltecem o papel da Mulher em condições extremas de sobrevivência.

Patti disse...

Um destino daqueles que não se pode fugir, à força da tradição.



É como o nosso Si, guerra é guerra! Vamos a eles!

paulofski disse...

Uma forma de vida rude e corajosa a combater pela sobrevivência ao lado dos senhores da guerra.

Entrei de mansinho, sem necessidade de vestir a armadura anti-coimas, ufa...

Gi disse...

O que mais me impressionava quando lia os livros de Pearl Buck era aquela "tortura" dos pés enfaixados para ficarem com uns pés pequeninos.

Filoxera disse...

Excelente! Qual Xógun, quais Cisnes Selvagens...
Beijinhos.