Pousou a mão sobre os olhos, defendendo-se do sol equatorial e olhou a savana para lá do horizonte, em busca de sinais de alerta para o perigo de emboscadas felinas. Colocou a alça do cesto na testa, pendurando-o atrás das costas e iniciou a caminhada até ao poço, escavado no meio da terra de ninguém.
Foi devagar. No ritmo imposto pelo peso da gravidez adiantada, dos seios nus, inchados e prontos a ser abastecidos de colostro e leite farto, o alimento mais rico que o filho iria ter ao longo de toda a sua vida e que a havia de deixar com o peito orgulhosamente espremido, alongado e caído sobre o estômago.
Sorria ao imaginá-lo.
Uma criança saudável, um filho robusto, que ela haveria de criar para se tornar guerreiro, que defenderia o gado e os cereais, para quem guardaria parte do rebanho para ele poder comprar quantas mulheres ele quisesse, três ou quatro que tomariam conta dela quando ela fosse tão velha que não pudesse ir buscar a água ou bater o polme.
No poço, lançou o cesto, deixou-o afundar-se e começou a recolhê-lo já cheio, içando a corda com vigor. Ainda ia a meio quando sentiu a primeira guinada, mas continuou; mais duas braçadas e a segunda contracção; à terceira foi obrigada a parar para respirar fundo, e o cesto subiu até à superfície com um gemido rouco.
Deitou-se na erva alta, coberta de suor, para descansar um momento.
As outras mulheres ainda não lhe tinham dito o que fazer, porque julgavam que ainda era cedo, mas as entranhas em fogo, pediam-lhe para puxar, para expulsar o ser estranho que lhe ocupava o corpo. De cócoras, arrancou as forças, juntou-as num só grito, deixou-se rasgar por dentro, enquanto o caminho se abria e uma cabeça lhe surgia pelo meio das pernas. Pegou-lhe com ambas as mãos e num esforço final, de dentes cerrados, rodou-o e tirou-o, ainda a fumegar do sangue quente do útero distendido, do cordão grosso que ainda ligava os dois, da placenta com que partilharam o alimento e o oxigénio.
No meio dos seus gritos, outro se elevou e o filho berrou pela primeira vez.
Rapidamente, meteu-lhe a mama na boca para o calar, arrastou-se pela erva, para chegar ao cesto e à agua, cortou o cordão com a pedra afiada que usava para desfiar os fetos que entrançava em cordas, lavou-o e embrulhou-o nos panos que apertava à cintura. Os restos do parto foram enterrados com as mãos, antes que as feras os cheirassem, os ouvidos e os olhos em alerta redobrado, num instinto de defesa que até aí lhe era desconhecido e que a fez correr para a segurança da cabana.
Só ali olhou para o filho, para lhe apreciar o rosto.
Só ali reparou que, afinal, era mãe de uma menina e então chorou.
Publicado na Fábrica de Letras
20 comentários:
A magia da vida transformada em angustia de ver nascer uma menina que vai sofrer o que não devia.
texto tocante.
Lindo.
Sem precisar de mais palavras!
Se calhar essa mãe engravidou numa dessas vitais idas ao poço, onde são atacadas pelos rebeldes e violadas de cada vez que lá vão.
Não interessa a idade; meninas, mulheres, velhas.
Vou falar disso e de uma solução finalmente encontrada no meu dia 8.
Realismo ao cimo da pele, Si. O que nestes casos não podia ser de outra forma; é muito difícil florear!
E é de chorar mesmo e de tentar modificar também.
Si, este teu intenso texto recorda-me uma história de vida, contada em primeira pessoa, de tempos em que o continente sofria dos horrores da guerra e este nosso país vegetava à fome e miséria. Aquela mulher, depois de lavrar a terra e dar uma sopa aguada aos quatro filhos, pariu ali mesmo, à borda do tanque de água tépida, enquanto enxaguava uns trapos descoloridos e rotos. Ela vive bem perto de nós.
Sem palavras ....
Bj.
Mais um post emotivo sobre a maternidade.
Carlos,
Se ler bem, não é a maternidade que está em causa...
Impressionanate, este relato. Um prto pode ter tantas formas de acontecer...
Beijinhos.
Si, mais um texto brilhante, em minha opinião um dos teus melhores.
Quanto ao choro, certamente terá sido de alegria...
Já uma vez escrevi, algures num comentário, que gosto muito de ser homem, mas que se pudesse voltar a nascer escolheria nascer mulher, apenas para poder passar por essa incomparável experiência da maternidade.
Devaneante,
OBrigada pelo elogio.
Não sei se terá sido dos melhores que já escrevi, mas foi uma coisa que, certamente, me deu muito prazer imaginar.
Quando tiver oportunidade há por aqui por este arquivo alguns posts de que deve gostar.
Não tenho um estilo definido. E tanto escrevo em prosa como em verso, faço textos longos ou de 1/2 dúzia de linhas, sérias, a brincar ou a fantasiar.
Se quiser, está À vontade para 'espiolhar' na bibliotaca...
Não é necessário agradecer, tenho por hábito ser sincero e um elogio sincero não carece de agradecimento.
Quanto ao convite para 'espiolhar', tenho de confessar que já tinha tomado essa liberdade. É certo que ainda não li tudo, mas, partindo dos textos mais antigos, já li muita coisa.
Eu, pela parte que me toca, sou muito menos versátil. Ainda assim não me envergonho do que escrevo e por isso mesmo retribuo o convite.
(e agora que já passa das 0:03 é tempo de ir ler o novo texto que já está ali à minha espera ;-))
INTENSO,COMOVENTE,REAL...
BOM DIA
Lindo e triste. :(
bjs*
Realidades diferentes, realidades desconhecidas de muitos... fica o sofrimento para quem o sente.
Impressionante e belo!beijos,chica
Que bela descrição`*
Nunca aqui tinha parado e, quando acontece, deparo-me com um texto assim, forte e comovente. Que pena ela chorar quando descobre que pariu mais uma mulher!
Parabéns pelo texto e pela realidade do mundo feminino que aqui traça e que temos de ir alterando.
Olá.
Texto surpreendentemente descritivo e intenso. Peguei-me também a "puxar", lol.
Esta tua história, que acontece todos os dias naqueles povos africanos, mostram-nos como o silêncio pode ser apanágio de alguém com muita força, alguém habituado a batalhar pela sobrevivência dia a dia. E nós ainda nos queixamos não é?
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