quinta-feira, 23 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível # 6


No início do mês de Março, Augusto começou a definhar. Mal de solidão, diziam uns, mal do coração, diziam outros, que de dia para dia lhe viam sumir-se a carne pelos ossos dentro e a alma a desprender-se pelo corpo fora, em discursos já desconexos.
Joaquina desdobrava-se em cuidados, Margarida mandou vir o médico vezes sem conta, mas de cada vez ele saía mais desanimado, com a cabeça a abanar e a esperança a desistir nos olhos de quem se cruzava.
Ainda aguentou a primeira semana de Abril, mas a segunda já a passou inconsciente, do lado de lá, do lado para onde partiria sem retorno, até que, finalmente, descansou, na madrugada de 20 de Abril de 1974.
Contra a vontade dos pais, a quem bateu o pé pela primeira vez na vida, Margarida foi ao funeral, agarrando Joaquina por um braço, sem se saber muito bem quem é que amparava quem. Com elas, o pároco e alguns dos vizinhos, mais curiosos de ver a 'Menina Margaridinha do Solar da Quinta Grande' a poucos metros de distância, embrulhada num lenço para a cabeça e nuns óculos escuros de grandes lentes quadradas, do que, propriamente por pesar ao defunto.
Já estava o caixão a descer à cova, quando o murmurinho se levantou e os olhos se reviraram em busca do motivo, que chegou dentro de um carro preto, abruptamente empurrado pela porta de trás, sem chegar a parar.
Alto, magro e com o cabelo meio desgrenhado, tropeçou ainda uma ou duas vezes antes de recuperar o equilíbrio e arranjar o casaco coçado e demasiado curto nas mangas. José, o filho de Augusto, acabado de sair do cárcere, chegava à Vila, no mesmo momento em que o Pai descia à terra, no mesmo momento em que alguém se lembrou de que ninguém o tinha avisado do acontecido.
Foi Joaquina, de braço dado com Margarida, que dele se abeirou, informando-o da triste nova, deixando-o confuso e atónito, num embasbacamento tal que as pernas lhe tremeram, lhe falharam por fim, deixando-o no meio do chão em choro convulsivo, órfão de mãe e pai de uma assentada só; na manhã seguinte, foi ainda com os olhos fundos de mais uma noite passada em claro, a pensar nos trambolhões da sua existência, que José viu nascer o último dia da sua vida tal e qual como a conhecia.
As consequências da Revolução de Abril de 1974, não se fizeram sentir logo naquela Vila, distantes que estavam dos grandes centros urbanos, e foi com algum receio que a população começou a acreditar que Portugal ficara, de repente, diferente dos 40 anos anteriores. Suspiros de alívio, ouviam-se, por toda a parte, era quando se recebiam as notícias referentes à Guerra do Ultramar, que davam como certo o final da contenda e o regresso à Metrópole dos que tinham de lá escapado com vida, alguns deles, filhos da Terra.
A Liberdade, não chegou, portanto, num dilúvio avassalador, mas sim numa maré viva, que antes foi vaza e foi cheia e que com a força dos acontecimentos se espraiou, lentamente, pelos caminhos desconchavados do interior Português, em rumores, em comentários, em atitudes ensaiadas e experimentadas às quais se iam medindo as consequências.
No Solar da Quinta Grande, o tema continuava a ser proibido. Nem o pai, nem os irmãos de Margarida se alongaram em explicações sobre o fenómeno, apenas referindo que as mudanças no país implicavam que 'deviam estar preparados', algo que ela interpretou de uma forma interrogativa e cheia de estranheza, principalmente quando viu a mãe a ir ao sótão buscar os baús e as malas de viagem.
A resposta chegou num dos primeiros dias de Novembro, e da forma mais inesperada: os trabalhadores da quinta juntaram-se todos à frente do Solar, gritando palavras de ordem, exigindo qualquer coisa, uma reforma, diziam, e que Margarida não compreendia. Como não compreendeu, quando o pai, de caçadeira em punho, se propunha disparar sobre a multidão, numa raiva incontida, que só os irmãos e o Sr. Jaime conseguiram segurar, antes que alguma desgraça acontecesse.

(continua amanhã)

23 comentários:

Gi disse...

O meu final ia ser muito politicamente incorrecto, desconfio!

Luis Eme disse...

foi assim...

infelizmente as desigualdades continuam, a Revolução cada vez mais se confunde com um sonho, Si...

Si disse...

Luís,
Este conto ainda não acabou.
Só no Sábado saberemos o destino final das personagens.
Quanto à sua comparação com a actualidade, infelizmente tenho de concordar que o sonho de igualdade se encontra cada vez mais longe.

Si disse...

Gi,
Se calhar é mesmo desses finais que precisamos, nunca se sabe!
Beijinhos

Nina disse...

Si, vc escreve bem.
Agora que notei que tem um 6 ali, entao, tem um 5 logo abaixo, e provavlemente um 4... ai ai, vou ter que ler tudo antes de sabado, rsrs


bjs!

Si disse...

Nina,
Obrigado!
E ainda tem um 1, um 2 e um 3, nos links que deixei no post do desafio. Tem que começar por aí, se tiver paciência para ler...
Ora espreite... já viu?
Beijinhos

pedro oliveira disse...

Todos estamos ansiosos pelo final,mas há sonhos que não passam disso mesmo e é cruel verificar isso 35 anos depois.

ANTONIO SARAMAGO disse...

Aqui está um pouco daquilo que eu descrevo no meu blog, os maleficios do 25 de Abril, uma liberdade mal recebida por muitas e muitas pessoas, porque para essas pessoas a liberdade dava-lhes direito de se apoderarem do que era dos outros e que com sacrificio o conseguiram.
Tens aqui bem espelhado a mentalidade de alguns Portugueses.

ANTONIO SARAMAGO disse...

Uma vez que falas na Guerra do Ultramar, quero dizer-te que foi mal terminada, onde tudo deixamos entregue á destruição maciça.

Si disse...

Pedro,
O que vale é que nos contos nós podemos dar o fim que quisermos, não é?
É que sonhar, pelo menos para já, ainda não paga imposto.

Si disse...

António,
Em todas as revoluções há exageros, há mudanças de comportamento radicais, boas e más índoles que se misturam, às vezes de uma maneira explosiva. Com o tempo, corrige-se.
Relativamente à Guerra no Ultramar, nem me alongo muito.
Quem as viveu na pele é que pode falar, não é?

Patti disse...

Ah, já o estou a ver comparsa do meu Salgueiro Maia ...

Si disse...

Ai Patti, Patti, nem me diga nada, que isto de criar personagens dá uma trabalheira desgraçada!
Então não é que eu quero que elas vão para um lado e elas me batem o pé e vão para outro??
Ganham vida própria e já me ameaçaram com uma greve e tudo??
Será que eu vou ter final para apresentar no Sábado? Será??

Patti disse...

Oh Si, mas é mesmo assim! As personagens têm vida própria, nós só as fazemos nascer, o resto é com elas.

Nunca, mas nunca impeça um personagem de ir para onde ele quiser!

Si disse...

Pois lá terá que ser....
Daqui a bocado tenho reunião plenária com umas quantas, a ver se chegamos a um acordo, ou no Sábado ainda me mancham o estaminé com algum bloqueio!! : )

BlueVelvet disse...

Só não sei onde anda a amiga da Margarida.
Não sei se consigo dar um fim a isto, já que termina a "sua" história sexta e quer o final para sábado.
Raio de editora mais exigente:)
Beijinhos de mim para Si

Si disse...

Velvet,
Olhe que não, olhe que não, sôdotôra (ai, credo que isto já são influências da época...)
Já viu as partidas que as personagens me andam a pregar??
Vai para aqui uma autêntica revolução, é o que é!!

continuando assim... disse...

apesar de tudo!!
não há que desistir por tudo o que foi conquistado há já 3 décadas atrás....

Si disse...

Teresa,
Desistir, nunca!
Já fez o seu final??

Anónimo disse...

Não tenho comentado, porque quero ler tudo no fim de fio a pavio e com calma, coisa que o tabalho não me tem permitido fazer.
Respondendo ao seu comentário lá no
Rochedo: Vou ali, mas já volto e o CR ficará entregue em boas mãos, mas amanhã explico tudo direitinho.

Si disse...

Carlos,
Espero o seu comentário com especial interesse, dada a sua vivência e as pesquisas que já fez sobre esta época.

1/4 de Fada disse...

Estou que nem me aguento. A história está a seguir um caminho entusiasmante! Será que chegamos aos nossos dias?

Si disse...

Fada,
Não faço a mínima ideia!
Estou em branco, com o mail à espera de receber as vossas sugestões!