domingo, 14 de dezembro de 2008

ponto de (Si)tuação # 9


Querido Diário,

Esta semana foi fértil em recordações, encontros e desencontros, memórias e textos saídos de imaginações em ebulição.

Já sabes que tenho uma escrita reactiva, e há textos que leio e a imaginação me transborda pelo teclado fora. Sempre fui assim, desde pequena, e ainda há dias me fizeram lembrar a primeira vez que o fiz, tinha eu cerca de 9 ou 10 anos.

Porque perdi esse registo, tentarei reproduzi-lo aqui, por outras palavras, é certo, e com um peso diferente em cada uma, mas, certamente, com a mesmíssima intenção. A de contar uma história.

Foi pouco tempo depois de ter lido um dos livros mais belos da minha vida. A colectânea de 'Contos' do Eça de Queirós, numa publicação das Edições Asa e que ainda consta nas estantes de casa dos meus pais. Lembro-me de ter ficado completamente esmagada pela força das palavras daquele Senhor, tão pequena que eu era, mas já tão ávida de leituras, que lia absolutamente tudo o que me aparecia à frente. Na escola, pediram-me uma redacção, sobre qualquer coisa que já não me recordo; resolvi fazê-la com um toque de homenagem ao escritor que tanto me impressionara e não fora a Professora Ermelinda já me conhecer de 'gingeira', acho que ainda hoje ela não teria acreditado na genuinidade daquele texto, tal foi o impacto que criou na turma.

E dizia qualquer coisa como isto:

Eu agora sou um livro. Mas nem sempre fui. Primeiro fui umas páginas soltas, que o meu Pai preencheu com palavras. O meu Pai escreveu-me, mas entretanto esqueceu-me durante anos a fio, dentro de umas gavetas poeirentas, e só ao fim de muito tempo é que voltei a ver a luz do sol, quando alguém pegou em mim e me levou para a rua. Passei por muitas mãos, que me folhearam e acariciaram as minhas páginas e acho que até consegui ver uns sorrisos nas caras de quem me olhou. Deve ter sido por isso, que me levaram para um sítio com muitas máquinas, onde me cortaram, colaram e puseram uma capa, com letras douradas e tudo, e me fizeram imensos irmãos, iguaizinhos a mim. Depois, fui para uma loja grande, com prateleiras enormes, onde havia muitos primos meus, de todos os tamanhos e feitios, até ao dia em que uma senhora idosa e bonita me escolheu para ir com ela. Cheguei lá a casa e ela leu-me logo, do princípio o fim, sem parar, escolheu-me o melhor sítio da estante para me pousar e todos os dias me limpava o pó. Mas veio uma altura, em que a Senhora convidou o neto dela para passar as férias e ele, se calhar com ciúmes da maneira como ela me tratava, sem ela ver, pegou em mim e magoou-me, rasgou-me e calcou-me. A Senhora ficou tão triste! Mas como não podia fazer nada por mim, acabei por ir parar ao lixo, não sem antes a ouvir dizer ao neto que, se o meu Pai fosse vivo, haveria de ficar muito zangado com o que ele fez. Foi assim que fiquei a saber que o meu Pai já tinha morrido. Ele chamava-se Eça de Queirós e nasceu no dia 25 de Novembro de 1901, na Póvoa de Varzim.

Pois, Querido Diário, naquela altura a Professora Ermelinda gostou muito e deu-me um 'Muito Bom' na redacção. Eu de ti, nem espero comentários. Só quero as tuas páginas para não me esquecer do que já fui.

Até Domingo, Querido Diário!

Beijinhos,

Si


6 comentários:

Gi disse...

A Professora Ermelinda deu "Muito Bom" porque, na altura, não havia "Exclente", como passou a haver posteriormente.

Tem desafo lá no blogue, telepaticamente, sobre leitura e livros e... Infância.

Filoxera disse...

Pois o seu diário pode não te deixar comentários, mas deixamos nós.
Eu era, na primária, a "heroína dos ditados". A professora deu-me esta alcunha porque os meus ditados não apresentavam erros.
Também gostava de redacções, nomeadamente de inventar que voava.
E agora vou, como a Si, remexer nas memórias para me lembrar das leituras infantis, em resposta ao desafio da Gi.
Beijos.

De dentro pra fora disse...

Sabes Si , por momentos pensei estar a ler um texto escrito pela mão da minha filha, ela melhor, mas muito melhor que eu escreve historias destas em que se transforma em outros seres outras coisas...adorei

Beijinho

Patti disse...

Aqui para nós, a Gi é bruxa. Eu também ia dizer Excelente!

São tão boas estas memórias...

Sexta-feira comprei na Bertrand das Amoreiras, o livro de bolso (8€) dos Contos do Eça, para trazer na carteira e reler em qualquer lado.

Tudo nele é tão bem dirigido, com um alvo tão bom que me apetece sempre ir lançar setas para um bar qualquer.

BlueVelvet disse...

Que sorte que a Prof.Ermelinda teve em ter uma aluna assim.
Não há Brilhante nas notas?
Beijinhos de mim para Si

Vera disse...

Si, quando eu era aluna da Primária, era aluna de Mtº Bom no ditado, na redacção, na caligrafia. Sempre adorei escrever e ler e li desde muito cedo muita coisa. Acho que me fez bem a abertura que sempre tive dos meus Pais para ler o que tirava de qualquer estante, de qualquer lugar da casa. Tal como tu, também sou muito reactiva. Sinceramente, não consigo andar a escrevinhar uma coisa durante uma data de tempo. Escrevo quando me lembro de qualquer coisa que me apetece escrever. Escrevo à primeira e não gosto de reler. Nem sempre saem palavras excelentes, mas saem palavras que gosto de escrever.
Eça é um MUST e eu adoro-o :-)