quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

uma longa história de encantar



Olhava para ela e sonhava, e ela olhava para ele e sonhava também.
Porque viviam em tocas separadas, os seus olhares só se cruzavam quando saíam com os irmãos para se espreguiçar ao sol de inverno, sob a vigilante e sagaz atenção das respectivas mães, que encorrilhando os narizes, cheiravam o ar, em busca de potenciais perigos.
Ele, amava apreciar-lhe os quadris, saracoteados na sua frente, em movimentos rápidos e decididos. Já ela, ficava era completamente fascinada com a agilidade que ele demonstrava nos difíceis exercícios de recolher sementes do cimo das árvores, directamente dos frutos, e que transportava nas enormes bochechas até casa. Coisas de ratos do campo, intimidades até à data nunca reveladas e que eu só soube, porque foi um passarinho que me contou.
Ambos pertenciam a famílias numerosas, mas a dela era dominante, lá no bairro deles, e ela, a filha única de 9 irmãos, logo, a fêmea mais cobiçada por todos, machos jovens e viris, mantidos a uma distância respeitosa imposta pelo pai Ratão, que do alto dos seus 10 centímetros e 30 gramas de peso, olhava de lado para os pretendentes, com o único olho que tinha porque o outro tinha sido perdido na luta que travara com um rival, na conquista da companheira. Uma espécie de condecoração de guerra, que ostentava com o orgulho de ter conseguido provar que era o mais forte.
Ora, sendo o mais forte, estava mais do que visto que só um forte exemplar de Muridae Holochillus se poderia tornar aspirante a genro, tanto mais que, para além da competição das outras famílias, o eleito teria que vencer ainda a protecção dos irmãos, todos os oito, muito ciosos do seu estatuto e posição social. Há quem diga que eram até um pouco rufias, mas eu não ligo a boatos e limito-me a relatar os acontecimentos.
Nestas condições não se incluía, concerteza, o apaixonado Ratinho, filho último da ninhada, o mais pequenino e fraquinho, por quase já não ter espaço para mamar quando nasceu. Cresceu, um bocado aos repelões e lá se foi fazendo à vida, na tentativa de sobreviver. Foi assim que se especializou em recolher sementes do alto das árvores, onde o seu pequeno corpo não pesava nas folhas o suficiente para chegar ao fruto antes de as quebrar.
Por isso, quando ouviu o vozeirão do Ratão, a anunciar que iria dar a sua única filha em casamento, àquele rato do campo que se demonstrasse mais valoroso, nem pensou em tentar a sua sorte, pondo o coração ao lado na paixão que sentia.
E a procissão começou, lá para os lados da casa da sua amada. Eram uns, os comedores, inchados, todos engalanados com tufos de pêlo, a mostrar a sua riqueza em botões, grãos de café, de arroz e milho, roubados aos humanos, eram outros, os lutadores, de dentuças arreganhadas e mangas arregaçadas a mostrar os músculos, outros ainda, os de biblioteca, que mostravam a sua esperteza e sagacidade, exibindo os bocados de lombadas de livros e páginas rasgadas, num sem fim de demonstrações de qualidades.
A tudo Ratinho assistia, desanimado por não poder oferecer nada de parecido e conquistar a mão, os pés e os quadris (ai, os quadris...!!!) daquela por quem batia o seu coração minúsculo. E retirou-se para um local afastado, onde só a via a ela e mais ninguém.
Enquanto uma lágrima lhe embaciou o olhar, Tinita, como ele, carinhosamente lhe chamava, desapareceu à sua frente. Incrédulo, afiou as orelhas e cheirou o ar, certificando-se da sua imediata suspeita. Havia milhafre por ali e levara-lhe a noiva que nunca chegara a ser! No meio de tanta festa, ninguém, nem o pai Ratão, tinha dado pela rapina presença, e era preciso agir, antes que fosse tarde!
Aflito, tentou avisar os outros, mas ninguém lhe deu atenção. Saltou, pulou, sem sucesso, guinchou até ficar rouco, mas ninguém o ouviu porque havia palmas para o líder, em pleno discurso. Desesperado, correu, e viu o milhafre no ar, com Tinita presa nas patas, a voar em direcção ao ninho. Decidiu-se a tentar o impossível. Iria subir ao alto da árvore e resgatar a amada. Se assim o pensou, melhor o fez e, num ápice, chegou ao topo, onde repousava o ninho, e o milhafre e a sua prole se preparavam para fazer a refeição. Sorrateiro, como só os ratos do campo sabem ser, enfiou-se pelo meio das palhas do ninho e ficou entre as pernas da ave. Escolheu o melhor ângulo e pregou-lhe uma valente dentada no abdómen, com os dentes mais fortes que tinha, fazendo-a gritar de dor. Sem perder tempo com explicações e aproveitando a distracção do raptor, empurrou desajeitadamente Tinita dali para fora, que caiu aos rebolões e só parou num galho mais saído de uma árvore vizinha.
Cá em baixo, o pânico era geral. Tinham dado pela falta da menina, procurado por ela e ouvido os seus gritos, enquanto caía do ninho. Agora, tinham a respiração suspensa, sem saber se ela estava viva ou morta, lá no cimo do ramo. Ratinho apressou-se em direcção a ela, deixando a ave confusa, sem perceber o que tinha sucedido. Depressa deduziu que não conseguiria, sózinho, salvar a razão da sua vida, mais depressa ainda, achou a solução. Gritou ao irmão a seguir a si que subisse pela árvore onde estava, e os dois, esticados em cordão, numa arriscada manobra acrobática, chegaram ao galho onde Tinita estava caída e ainda abalada. O silêncio imperava, quando tirei esta foto, e toda a gente ouviu, precisamente no minuto em que Ratinho, estendendo uma flor à sua amada, lhe perguntou, no calor do momento: 'Queres casar comigo??'

19 comentários:

Pitanga Doce disse...

Huum, andam pr'aqui a medirem e a pesarem ratinhos e a analisarem os Holochilus da familia Muridae...isto cheira-me a Biólogos por perto. hehehehe

Si disse...

Pitanga,
Quanta honra, uma visita vinda do outro lado do oceano!!!
Ahahaaha, não cheira, não, cheira é a rigor, senhora, rigor, que mesmo para as histórias de encantar, vou à wikipédia saber as características das personagens, pois então!!!
Beijinhos e volte mais vezes, sim, Pitanga?

De dentro pra fora disse...

Bela historia...e ela o que respondeu!??
Depois de toda esta aventura só pode ter dito um orgulhoso SIM, não achas?
A imagem está girissima

Si disse...

De dentro,
As histórias de encantar, acabam sempre com um SIM e um 'eles viveram felizes para sempre', talvez esta acabe assim também...
Mas não posso afirmar: só posso contar o que o passarinho me contou...
Beijinhos!

salvoconduto disse...

Belo presente de Natal este, vizinha!

Gi disse...

E eu que tenho esta imagem guardada no meu (do computador, claro) disco rígido e não sabia que tinha sido a Si que tinha tirado. ;)
Ainda hoje adoro ler estas histórias.
Aposto que viveram flizes para sempre ... porque não viviam na China.

ANTONIO SARAMAGO disse...

BELAS HISTÓRIAS APROPRIADAS Á QUADRA, só não percebo como conseguis-te decifrar tudo isso.
Tens Ratinhos que falam?
Uma Bonita imaginação aliás!!!

pedro oliveira disse...

A resposta só pode ser SIM.
Bela história.

Ka disse...

Que história deliciosa!!!
E a música que acompanh é uma verdadeira delícia!!!

Parabéns Si!!!

Beijinhos e uma excelente dia

Si disse...

Salvo,
Se gostou dele, pode levá-lo e pendurá-lo no sapatinho, bizinho, esteja à vontade!

BlueVelvet disse...

Tão de encantar, tão de encantar que até vi esquilos onde estão ratos, que é outro bicho do qual fujo a sete pés.
Linda, linda.
Beijinhos de mim para Si

Si disse...

Gi,
Ahahaha, foi conferir a Wikipedia e deu de caras com os bambuzais, não foi?? - Mas diz lá também que se encontram no Novo Mundo... e não é que esta foto foi tirada nos 'Estates'??
Beijinhos

BlueVelvet disse...

Tão de enacantar, tão de encantar que até vi esquilos em vez de ratos que é um bicho do qual fujo a 7 pés.
Dava para fazer um desafio mostrando a imagem e pedindo para contar uma história sobre ela.
E o 1º prémio ia para a afilhada, claro.
Beijinhos de mim para Si

Filoxera disse...

Lindo. E romântico...
Beijinhos.

Pitanga Doce disse...

Si, ainda não voltei ao meu estado normal de "escrivinhações' mas prometo voltar.

beijos do lado de cá

Anónimo disse...

É bonito, mas fiquei curioso. Por isso, apetece-me perguntar: E depois?
Lá por ser Natal, não me venha com a resposta "Depois o coelhinho foi com o Pai Natal ao Circo!"

Coragem disse...

O que me quer parecer a mim, é que a Si, de tanto carinho que nutre pela vizinhança, escreve estas maravilhosas histórias com a intensão de perderem o receio por estas especies :)))

Ao ler, esquecemos o "pavoroso" (nada tem de pavoroso) rato do campo, Muridae Holochilus que tantas vezes me vêm espreitar à porta da cozinha, e lá cai uma migalha de pão propositadamente.

Adorei!

Beijinhos

Patti disse...

Que perdição de imagem essa, Si. E o mais incrível, é que nada é montagem.
Nós humanos, não percebemos mesmo nada de nada.
Que amores! Eu também adoro tudo o que é bicho e sei de fonte segura que eles pensam e falam e muito mais que nós!

Por isso, nada me espanta esta sua história, apetitosa e carregadinha de pormenores subtis, pois também se vê que os compreende muito bem, pois não escreveria assim.

E já chegou a acordo com a Disney? Senhora, regateie que eles pagam bem!

Uma ternura!

Si disse...

Vizinhança:
A curiosade demonstrada por alguns, em relação à sequência da história de Ratinho e Tinita, levou-me a, apesar de já não saber nada deles desde o Verão passado, tentar apurar novidades. O que me chegou vai ser publicado amanhã.
Beijinhos a todos e obrigada por ainda acreditarem e gostarem de histórias de encantar.

Beijinhos