terça-feira, 2 de dezembro de 2008

não era dezembro nem nada


Almoçava todos os dias no mesmo sítio, sentada na esplanada quando o calor apertava, ou no interior do snack, quando o frio assim mandava.
O tempo era pouco, a refeição leve e apressada, suficiente apenas para confortar o estômago entre dois compromissos.
'Tem um cigarro?' - surpreendida no meio da leitura das 'gordas' do jornal, olhou-o, rapidamente, e respondeu-lhe que não, desviando-se de novo para o papel cinzento. 'E um sumol? Paga-me um sumol?' - a insistência assustou-a, sobressaltou-a, fazendo-a pensar nos perigos que há por este mundo fora e nos monstros que se escondem por trás de caras de velhos de cabelos brancos, meios desgrenhados, que se desenhavam à sua frente, absorvidos por uns olhos já atentos, não fosse dali sair alguma coisa má. 'Não, não pago, tenha paciência'. 'Obrigado, minha Senhora'. E voltou as costas, num andar ligeiramente trôpego, sem mãos estendidas.
'Bolas, se calhar foste má' - afirmou-lhe a consciência a acusar o peso de uma injustiça.
Por minutos, deixou o jornal e apreciou o comportamento do velho que já estava na passadeira, a atravessar para a pastelaria em frente. Pareceu-lhe inofensivo e desamparado. Incrivelmente desamparado.
'Mas por que raio é que te assustaste assim? E por que raio lhe respondeste assim?' - tornou a indagar a consciência, inquieta. 'Olha, porque tive medo!' 'Medo de quê???' 'Sei lá, medo, pronto!!'
Ia retomar a leitura do jornal, quando a consciência a obrigou a levantar os olhos. O velho dirigia-se de novo na sua direcção. 'E agora? Ainda tens medo? Ou não fazes nada porque simplesmente não te apetece?' Ainda hesitou, mas quando o viu a afastar-se de novo, a consciência deu-lhe um forte beliscão, que a forçou a abrir a boca. 'Desculpe lá, o Senhor ainda quer o sumol?' 'Se a Senhora pagar, quero, sim'. 'E não quer mais nada?' 'Não, minha Senhora, só quero o sumol, de laranja, faz favor, só gosto de laranja'. 'E comer? Não quer comer nada? Quer comer uma tosta igual à minha?' Depois de alguns segundos de pausa, repondeu. 'Pode ser, minha Senhora, muito obrigado'.
Sentou-se mesmo ali, ao lado dela, muito direito na cadeira, enquanto lhe preparavam o pedido, em silêncio, com as mãos quietas, em cima da mesa. Recusou o copo, porque só gostava de beber pela garrafa, de um trago só, no final da comida. Limpou as mãos ao guardanapo de papel, levantou-se, arrumou a cadeira e disse 'Muito obrigado, minha Senhora, muito obrigado'.
Confusa com a polidez do comportamento, respondeu um 'De nada' quase imperceptível, magoado pela maledicência dos pensamentos anteriores.
Voltaram a encontrar-se mais vezes. De Verão era o sumol, sempre de laranja, sempre bebido pela garrafa, e de vez em quando um pão, sem nada, que fazia questão de pagar ele mesmo. De Inverno, deixou-se convencer a comer uma sopa, de que tinha primeiro afirmado não gostar, de que afinal gostava, bem quente, antes do sumol de laranja. Chegava, sentava-se, comia em silêncio e ia embora, sempre com a mesma frase final: 'Muito obrigado, minha Senhora'.

Já há uns tempos que não o vejo. Não sei o que lhe aconteceu.


(história verídica)

21 comentários:

salvoconduto disse...

Pode ser que apareça por estes dias de barba branca e vestido de vermelho...

Gi disse...

As gordas dizem absolutamente e quase tudo.

pedro oliveira disse...

A indiferença deu lugar a preocupação.Hoje em dia são muitos os que precisam de uma sopa e de um sumol, também prefiro pagar qualquer coisa para comer do que dar dinheiro, fico sempre com a sensação qeu o dinheiro não vai ser utilizado para o que devia.
bjs

Patti disse...

Eu ao contrário de Si, nunca tive medo e sempre fui a primeira a aproximar-me.
Faço-o sempre e passeio-o à minha filha e neste tempo gelado ainda tenho mais atenção.

Já tentou perguntar por ele às pessoas do café? Empregados, clientes habituais?

Ainda bem que venceu o medo, ganhou muito mas com isso do que ele com as sandes, os sumóis e as sopas, não foi, Si?

Ka disse...

Deliciosa esta história! Faz-nos bem não termos medo...aquece-nos o coração não é?

A música está soberba querida Si :)

beijinho e uma excelente semana!

ANTONIO SARAMAGO disse...

Nunca te arrependas do bem que fazes!!!

Anónimo disse...

Adorei, Si! Guardo alguns dos melhores momentos da minha vida em situações semelhantes. Ainda hoje recordo um pedinte que, quando eu vivia no Porto, ia todas as tardes de domingo lá a casa pedir comida. Só comida. Um dia dei-lhe dinheiro e le recusou. Respondeu-me apenas:
"Se o menino me dá todas as semanas toda esta comida, não preciso de dinheiro, muito obrigado!"
Um dia desapareceu. Esteve quase um ano sem lá aparecer e entretanto vim para Lisboa. Foi com surpresa que um dia ouvi a minha mãe perguntar-me ao telefone:
"Sabes quem esteve cá hoje? O "teu" pedinte"
Não aparecera mais, porque entretanto um filho o recebera em sua casa, mas passado algum tempo "cansou-se" e devolveu-o à rua. A minha mãe dise-me que perguntou por mim, desejou muito boa sorte e perguntou, educadamente, se poderia continuara ir lá ao domingo, mesmo na minha ausência.
Claro que ela disse que sim. Ainda o encontrei mais uma vez, num fim de semana que estava no Porto. Chorámos os dois como Madalenas. Nunca mais o vi!!!
Deculpe, Si, o espaço que lhe roubei
Conchinhas vidradas

1/4 de Fada disse...

Quando eu era jovem, havia um mendigo que todas as quartas-feiras de manhã ia a casa dos meus pais e a minha mãe dava-lhe de comer. A situação durou o tempo suficiente para se tornar um hábito. Quando os meus pais foram para fora por vários anos, eu fiquei a viver na casa deles e herdei o "pobrezinho das quartas-feiras", nome com que ele próprio se identificava quando, ao tocar a campainha, a minha mãe perguntava quem era. Com o tempo, fiquei a saber coisas da vida dele e a dar-lhe roupa minha para uma filha, filha essa que foi de propósito anunciar-me a morte do pai, a pedido dele. Já doente, o "pobrezinho das quartas-feiras" tinha pedido à filha que avisasse as pessoas que habitualmente o ajudavam, para não estranharem a ausência dele... Nunca mais me tinha lembrado disto. Há realmente histórias incríveis.

Si disse...

Patti,
Já experimentei sim. Ninguém sabe de nada.
Depois de deixar de o ver à hora do almoço, só o vi uma vez, a andar pelo meio da cidade.
Na altura em que isto aconteceu, apenas me disseram que era um senhor com um ligeiro atraso mental, que ficou a viver só quando a mãe faleceu, já com muita idade.
Fiquei realmente a ganhar muito, especialmente na vergonha dos juízos precipitados que às vezes se fazem.
Beijinhos

Miepeee disse...

Ai senhora ja me deixou com os olhos marejados.
Espero que nada de mal lhe tenha acontecido e que em breve o encontre.

Si disse...

Salvo,
Bem gostava que aparecesse, e se quer que lhe diga, nem me importava que viesse vestido à Benfica....

Si disse...

Gi,
É que nem era mesmo Dezembro....
Beijinhos

Si disse...

Pedro,
Por estar cansada desses exemplos é que hesitei e quase cometi uma injustiça.

Si disse...

Ka,
Obrigada!
Também já fui ao seu cantinho 'marcar o ponto'.
Beijinhos

Si disse...

António,
Arrepender nunca me poderei arrepender, agora muitas vezes duvido é se o bem que estou a fazer vai na mesma direcção da minha intenção.

Si disse...

Carlos,
A si nunca poderei recusar uma linha que seja do meu espaço, por isso esteja à vontade.
Em miúda, também havia na minha casa um pobre que vinha sempre às 6ªs feiras e para o qual a minha mãe já tinha sempre preparado 2 pães, bem recheados, 1 litro de leite e 2 peças de fruta.
E ao obrigado dele, a minha mãe respondia sempre 'Vá com Deus'...

Si disse...

Fada,
Esta história aconteceu há cerca de 3 ou 4 anos e depois disso nunca mais o vi. Se não fossem as conversas sobre solidariedade que ontem povoavam a blogosfera, também a mim já não me lembraria para a contar aqui e trocar o alinhamento todo dos posts agendados.
Esta vida leva com tanta facilidade momentos que não deváimos esquecer........

Si disse...

Miepeee,
Entretanto já passou tempo demais. Pode ser que o senhor esteja bem e que o seu desaparecimento não seja mais do que um mero desencontro com a vida atribulada que todos os dias nos troca as voltas. Pelo menos, assim espero.
Beijinhos

BlueVelvet disse...

Que sociedade esta que nos faz ter como 1ª reacção, o medo quando um estranho se aproxima de nós!
Às vezes acontece-me não saber se estou no caminho certo, abrando, abro a janela do carro para saber a informação, e as pessoas, instintivamente, afastam-se.
Ainda bem que a Si mudou de atitude.
Por uns tempos foi Natal na vida desse senhor.
Beijinhos de mim para Si

De dentro pra fora disse...

Não deves sentir vergonha dos teus primeiros pensamentos, infelizmente muitos de nós pensam da mesma maneira porque já se sentiram 'enganados' com falsos pedintes, ainda por cima pudeste redimirte deles e fazer um amigo...
São historias destas que nos fazem ver que ainda vale a pena ajudar quem precisa(mesmo) de ajuda e que por isso mesmo nos aquecem um bocadinho o coração.

Beijinho

Coragem disse...

Não me admira o receio do primeiro contacto...Infelizmente, hoje em dia não nos podemos dar, sem recear... Já tive destes encontros, com a verdadeira pobreza, nem foi por comida, mas por medicação.
Fica a certeza que agimos bem.
Mas a memória não nos apaga estes momentos, por vezes fica até a vontade de ir mais longe.

Beijinho