quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

patchwork


Nas linhas brancas dos alinhavos, revia as prioridades da sua vida. A espaços regulares e muito direitos, esboçava os passos que dava em cada dia, primeiro com o giz, à laia de ensaio, depois com a tesoura que lhe definia os limites, a seguir com a agulha, que lhe juntava provisoriamente avessos e enviuzados para ver se se entendiam, e, só no fim, com a máquina de pedal, que casava definitivamente as decisões do figurino em ligar fazendas, entretelas, fitas de nastro, forros de cetim e ombreiras.
Jacinto era, portanto, um homem pacato e ponderado, filho único do único alfaiate dos Pousos, aldeia onde nascera 56 anos antes. Do pai, herdara a profissão e a loja, da mãe, o feitio à medida de qualquer moça casadoira que se quisesse perder naqueles olhos castanhos avelã, iguais aos galões que pregava nos fatos de linho.
Mas os anos foram passando, e nenhuma quis coser a sua vida à dele, nem ele nunca se encantou com os modelos da terra, julgados e bem medidos pela bitola que tinha dentro da cabeça. Os pais desapareceram e ele ficou, sózinho, fielmente unido às costuras da clientela.
Por alturas do Outono, precisamente quando o caixeiro-viajante andava numa lufa-lufa, no leva e traz das novidades da estação, chegou-lhe aos ouvidos que iria chegar, em breve, a filha emigrada dos donos da retrosaria, que tinha abalado para França logo em menininha. Recordava-se, muito vagamente, de uma cachopa de tranças bem apertadas em dois grandes laçarotes de cetim rosado, chuleado à mão nas pontas, para não desfiar, e do rosto, só conservava a imagem de dois botões negros e grandes, forrados com pestanas espessas.
Foi, por isso, com surpresa, que numa quinta-feira à tarde, viu passar uma figura alta, dentro de um vestido de algodão lilás, primorosamente debruado a nastro de florinhas minúsculas, decote quadrado e manga três quartos. As pinças do corpete, perfeitamente alinhadas com o encaixe do peito generoso, sobressaíam elegância, e a saia rodada, em godés de guarda-chuva, tinha a baínha logo abaixo do joelho, para deixar à mostra a medida certa de umas pernas encamisadas numas meias de seda transparente e sapatos a condizer.
Quase em câmara lenta, desfilou defronte da sua loja, com um sorriso estampado na cara, em contraponto ao recorte liso de um par de lábios aveludados, estacou à porta e deixou sair um gritinho de alegria. Jacintô!!, exclamou, estás na mesma!! Não te lembrras de mim?? Sou a Suzete, crriatura, o que eu chorrei por toi, quando me fui, chérrri!!
Naquele momento, Jacinto sentiu-se como que picado por milhares de alfinetes, atordoado como se o ferro de engomar lhe tivesse caído em cima da cabeça! Como pudera esquecer? Como pudera não lembrar a carteira de escola atrás da dela, e o que ele apreciava o ponto cheio das letras 'S.M.' bordadas no seu bibe? Suzete Marrazes....há quanto tempo!!!
Rapidamente, ela pô-lo a par da sua vida, como modista de luxo das Madames em Paris, pondo em prática o que aprendera na Mestra que a acolheu à chegada de Portugal. Falou-lhe da riqueza dos tecidos, das cores que lhe traziam do estrangeiro, das linhas de seda, das máquinas de corte que inaugurara no novo atelier, de tudo, tudo e também das saudades que lhe ficaram no peito ao despedir-se dos Pousos. Voltava para ficar, queria assentar os vincos da sua existência.
Escusado será dizer, que não tardou muito a que Jacinto e Suzete juntassem os trapinhos e unissem as suas vidas, afinal, eram um para o outro como colchetes e nunca mais se desapertaram, caminhando lado a lado pelas pregas da vida em felicidade reforçada em cada ponto.

Perguntei-lhes como quereriam que terminasse de contar a sua história.

Foi-me dito que lhe desse um fecho de correr.

17 comentários:

salvoconduto disse...

Fecho de correr? o Jacinto? Nã, ele só fazia fatos com calças de botões. Ainda o estou a ver fazer-me o meu último fato por medida, bem ali a meio da Rua Costa Cabral, ele que ajudava à missa na igreja do Marquês. Nã, o melhor é deixar correr a história.

pedro oliveira disse...

Bonita história.Eu moro nos Pousos(Leiria).

Gi disse...

Quer ser minha professora de escrita criativa?
Valha-me Deus que nem sei o que ando lá a fazer!!!!

Aqui a nosa Suzete (só com um T) veio pousar e posar para o Jacinto. Deste amor,bem embainhado, de certeza que nasceram unscatraios sem precisão de colchetes e fitas de velcro.

Vera disse...

Si, já tinha lido o post ontem à noite, mas estava com sono demais para comentar. Sorry...
Gostei tanto! sem mais conSiderações:)

De dentro pra fora disse...

Bem como gosto de finais felizes...imagino que ainda hoje o 'fecho de correr' que deste a esta linda historia corre muito bem pela vida fora e vai passando agora de boca em boca, depois que a deste a conhecer...

Patti disse...

Muito bonito Si e adorei todos os pormenores do trabalhar dos tecidos, não fosse essa também uma faceta da minha profissão.

E lá está uma ponta esquecida que deu a laçada certa na devida altura.

Parabéns pelo texto.

Fenix disse...

AH!!!
Que bela história de costureiro e modista!
E que bem contada!
Só pode ter saído do giz de uma entendida em costura e em escrita!

Gostei muito.
Foi lindo..., a narrativa e o reencontro!

Beijinhos

1/4 de Fada disse...

Adoro uma história com final feliz. Um fecho de correr lembra-me uma uma história que ainda pode continuar, será que vêm cenas dos próximos capítulos?

Anónimo disse...

Por agora, não comento, por manifesta falta de tempo. Venho apenas manifestar a minha indignação (rsrsrs) pela cunha que meteu à PresidentA. Agora vai ter de pagar as coimas - de froma solidária - com as 3 vítimas da fúria justiceira que desencadeou!
Qualquer dia a Al Qaeda ainda a contrata para as fileiras (rsrsrs)

BlueVelvet disse...

Si,
lidou com os alinhavos, a tesoura e o giz, como uma pintora lida com os pincéis e as cores, quando pinta um quadro.
Como assinatura, um fecho de correr.
Texto fantástico.
Adorei.
Beijinhos de mim para Si

Devaneante disse...

Era bem forte a linha usada para dar aqueles pontos que os uniu na infância...

Miepeee disse...

Muito bonito, consegue deixar-me a somhar :)
Beijinho.

Anónimo disse...

Volto hoje para reler e comentar. Gosto sempre mais de o fazer pela manhã, quando as ideias estão mais frescas e aprecio melhor os preciosos bordados da sua escrita.
O texto é soberbo, minha cara Afilhada! Cada vez mais acredito que devemos inveerter posições, pois sou eu a aprender com a sua magnífica forma de escrever.

paulofski disse...

Bonitas letras costuradas a amor.

Um dia terei de bordar umas palavras em honra da minha costureirinha, um dia!

ana v. disse...

Belíssimo texto, Si, e com muita graça também. Parabéns.

Johnny disse...

Espectacular. Tinha lido num re-post, mas desapareceu e voltou para aqui. Espectacular.

Johnny disse...

Este post apareceu no reader dia 10 de julho, com a seguinte nota por baixo: "(Post publicado em 18 de Fevereiro de 2009)" Mas quando carregava no título para aceder ao post, de 10 de Julho, não existia... o que me levou a comentar na data original.