sexta-feira, 29 de maio de 2009

(em)balanços


No morno embalar da rede, ao ritmo das horas cansadas para lá do meio-dia, Minino Malé, amodorrava-se numa preguiça que só lhe lembrava o infantil esconderijo, pousado no regaço da Nina do Tonho, generoso no tamanho e no conteúdo, sempre farto de um leite adocicado, saído de mamilos democraticamente partilhados por entre todos os seus filhos de criação.
Malé olhava o céu e, pela posição do sol, calculou que estivesse na hora de receber os pingos refrescantes das nuvens, despejados quase de uma só vez, apressadas que elas estariam, como sempre, quando chegavam àquela Terra, de chegar, diluviar e avançar para outras paragens.
Pois que viessem.
Enroscou-se. E ao fazê-lo, deu lanço ao embalo da cama suspensa. Adormeceu.
Acordou já tarde, quando a brisa mais fresca lhe cocegou as pernas nuas e os pés descalços, anunciando o derretimento da bola de fogo naquele céu torrado, assim que tocava o horizonte. Esparramado, assistiu àquele espectáculo diário de raios transbordados, a enchente rasteira do astro-rei, que resiste a desabraçar a terra e se despede, ainda que por poucas horas, da tarefa de a aquecer e iluminar; embalou-se nas cores, nas sombras e nos cheiros que o crepúsculo trazia e escutou, como se primeirasse, a chilreada barulhíssima da passarada a assentar.

- Minino! Salta desse 'conchego e vai no poço, qui num tem água - interrompeu-lhe Nina
- Ah, Mãe Nina, diz antes pró Membo... - molengou ele - pode?
- E porquê, oras?
- 'tô escutando música...
- Mas ninguém tá tocando!! - estranhou - Minino esquisito...
- 'tá, sim, Mãe Nina... é a Terra que 'tá cantando uma canção de ninar, prós pássaro sossegar...

Mãe Nina não insistiu. Mandou Membo pela água. E abanando a cabeça, pensou mesmo que Minino amalucara.
Malé enredou-se de novo. Não preguiçara na resposta. Durante todo o dia, nada mais tinha ouvido do que essa melodia. No morno embalar da rede, ao ritmo das horas cansadas, aquele bater de um coração, no peito da terra de África.

21 comentários:

salvoconduto disse...

Com um dia quente como o de hoje só mesmo como o Malé, uma rede e uns borrifos de água por cima...

Miepeee disse...

Que bem que eu me balancava numa rede a sombra de uma palmeira :)
beijinho.

Laetitia disse...

Que post lindo...

Tenho um colega que foi durante um mês para Àfrica.

Por certo ele iria adorar este texto.

Beijinho grande

Pitanga Doce disse...

Seguiu mail no balanço.

Anónimo disse...

Eu estou fazendo como o Malé. por aqui vou ficando na espreguiçadeira do Rochedo. Ora lendo, ora espreitando pelo bairro, com um intervalo para um banhito na piscina. Cheira a férias, mas a apartirde segunda-feira é que vão ser elas....

1/4 de Fada disse...

E a nostalgia que de repente tomou conta de mim? Até parece que sinto o cheiro da terra molhada depois da chuva... Ler este seu texto depois de um dia tão cansativo como o que hoje tive foi um verdadeiro prazer.

cristina ribeiro disse...

Texto delicioso este, a lembrar que o tempo também é isto: mais do que tudo, isto - o pulsar da vida, que tem tanto de telúrico.

Luísa A. disse...

Nunca estive em África, Si, mas ia dizer que este texto só podia ter sido escrito por alguém que lá tivesse vivido e a tivesse sentido profundamente. Será o caso? Está muito bonito, muito cheio de embalo, mesmo! :-)

Mike disse...

Sou suspeito, Si. O post (texto e foto) invocam África e quando assim é... A Cristina já adjectivou o texto e a Luísa antecipou a questão que eu ia levantar. Gostei muito deste post. :)

Si disse...

Luísa e Mike,
Nunca estive em África, mas o misticismo deste continente fascina-me completamente.
Escrevi este texto apenas como uma 'experiência expressiva', para ver o que se sentia quando se reinventam palavras.

Gi disse...

Xi, patroa, Si Pepetela Couto é sua graça,né?!!!! Maning nice!

Justine disse...

No teu espêndido texto bate, inteiro, o coração da Mãe-Terra África

Violeta disse...

mas que bonito e ternurento. Gostei muito
Apesar do poço qi num tem água...

ANTONIO SARAMAGO disse...

As minhas desculpas pela ausência deste cantinho em que todos ficamos embalados +pela sua beleza até se adormecer com o sentimento das palavras.

Filoxera disse...

Ai, a minha paixão ainda por conhecer: África.
Parecia que lia Mia Couto.
Parabéns!

paulofski disse...

Este teu texto teve o atrevimento de me fazer transportar para paragens nunca antes visitadas, e fiquei por lá como se lá estivesse estado, deitado, acordado, num balancé constante, molengante.

Não me acordem faxabôre.

pedro oliveira disse...

Então? estou a ficar com saudades,ai,ai,ai

Pitanga Doce disse...

Iiiih! O vírus ainda anda por aqui!!!

Gi disse...

Atenção gente: parece feitiço do Membo, de Malé e da Mãe Nina, mesmo.
A net da Si pifou. Xi!
Nem ela não consegue entrar na casa dela, nem ela não consegue comentar na casa dos outro, ela só consegue, memo, porque os Deuses gostam dela maning, mandar mail pr'a Gi e acenar aosvossos comentários na casa dela. Os Deuses não gostam de maleducação.
Om Si-Coração da Xi, perdão, da Si pr'a cê todos, visse?

Devaneante disse...

Que inveja!... Como me apetecia ser agora o Minino Malé!...

Carlos Albuquerque disse...

Deixou o link para este post no meu blog. Obrigado. Pedi ao meu Mwata que o seguisse. Ele aqui chegou. Deixo-o à conversa com a Si.
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Te trago boa tarde, senhora. O Kota das Conversas me disse, te pegas no dongo e ximbica caté na sanzala dela. Lhe respeitei na ordem. As água daquele mar da Kyanda me viajaram. Como o Kota me mandou na educação, nos tempo que eu era monandengue, lh'aprendi na leitura das letra. Cadavez, por isso, te li. Também cada vez por isso te escrevo (o Kota diz escrevinhar, mas isso é mania dele). Os (em)balanços, lhe gostei muito, mesmo! Parece que te fizeram nascer na minha terra e te deram de beber água do Bengo. Ué, escreves bué bem, inté o meu coração te consegue ler. Agora, o Kota me chama. Vou já na picada da volta. Te deixo o meu dongo, lh'apanho o maximbombo. Caté!
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Desculpe o meu Mwata metediço e o seu linguajar.
Se o seu texto foi um ensaio, uma "experiência expressiva", amaluque, não deixe molengar a sua veia literária. África é terra mãe, deixe-a explodir no seu imaginário.
Fico por cá, quero voltar a ver o que nasceu de novo!
Abraço
--
PS - se quiser, dê uma volta por aqui:
http://conversasdaquiedali.blogspot.com/search/label/De%20novo%20o%20Mwata%20Milagre%20%28Mafu%20e%20Suru%29