terça-feira, 28 de outubro de 2008

identidade secreta # 1


nunca disse a idade, nunca disse o nome verdadeiro, nem de onde provinha. sentia-se mais segura assim, alerta contra os perigos tantas vezes enumerados, repetidos e memorizados. tinha prometido a si mesma que assim seria sempre, reservando para um cofre bem blindado as memórias e os sentimentos, as experiências vividas e as dores contraídas.
dizia sempre as mesmas palavras, repetia sempre os mesmos gestos, noite após noite, ronda após ronda, tentando não fixar os rostos, os vícios, os tiques e os cheiros.
pelas marcas vincadas da face, adivinhavam-lhe os cinquenta e qualquer coisa e chamavam-lhe a Galega, porque na parte de trás da velha carrinha, onde os cobertores se amontoavam, havia parte de um autocolante rasgado, com a palavra “galicia”, que remontava a tempos mais felizes.
já tinham desistido de lhe fazer perguntas e assim como aparecia, sempre à mesma hora e nos mesmos locais, desaparecia, sem rasto, sem ruído, movendo-se com a fluidez de um fantasma, que nem a sombra deixava para trás.
Luena era quem dela mais gostava.
sempre que ouvia o roar do escape roto e os soluços do motor, os únicos sons que a identificavam, reunia rapidamente os tarecos da Misericórdia e, de um salto, perfilava-se junto ao candeeiro da esquina, para que lhe distinguissem a cor da pele da cor da noite. alisava o casaco desfiado, endireitava o cachecol desbotado e segurava com força a tigela escanada, para que as mãos negras não lhe tremessem ao segurar a sopa fervente. o pão partia-lho a Galega lá para dentro, e a moçambicana agradecia os gestos mecânicos da outra sempre com as mesmas palavras, respeitando o ritual como se duma cerimónia se tratasse. Deus te 'bençoe, g'lega, qu'a tripa já reclama do caldo. vida madrasta essa, não? sim, Luena, a vida é madrasta para todos, que te saiba bem e descansa. não te queimes, respondia ela automaticamente, enquanto voltava a colher para outra malga estendida.
Luena queimava-se. dava-lhe prazer aquele líquido quente a escorrer pela garganta abaixo, engrossado pelas sopas de pão. era a única altura do dia em que sentia realmente alguma coisa, em que saía da dormência do crack fumado doentiamente e dava uma oportunidade ao corpo e ao espírito de experimentar algo de físico.
e, enquanto tinha os sentidos acordados, indagava-se sobre aquela estranha que já conhecia tão intimamente por saber de cor quantas palavras dizia, com que expressão o fazia e quantas vezes levava as mãos ao cabelo para puxar para trás a madeixa teimosa que lhe saía do gorro de inverno ou do lenço de verão.
___

depois da ronda, ia descansar. lavava a cara e as mãos, esfregando-se como se quisesse arrancar a miséria da pele. a velha carripana, com o motor quase a gripar, ia precisar de óleo, mas isso tinha de esperar. os cobertores, contados e recontados só iam dar até ao final da semana e isto se o frio não teimasse em perdurar, adiando outra vez o fim da estação em que os velhos morriam mais. paciência. logo se havia de ver o que faria para resolver. metodicamente, ia retirando a roupa, primeiro as calças, para ficarem por baixo, depois o casaco demasiado largo, a camisola de gola alta cinza e, finalmente, o soutien que não conseguia segurar o seios secos e enfezados.
vestia uma velha camisa de dormir, com laços e rendas desfeitos pela humidade, ajeitava a almofada amarelada e puxando para si um dos cobertores azuis, tentava adormecer. pela cabeça, desfilavam as mesmas imagens de sempre. as que queria esquecer mas não conseguia, as que lhe atormentavam a alma, sem dó nem piedade, as que a faziam desesperar num tormento dorido e a mantinham acordada, até de madrugada o cansaço a vencer.



nota: acaba amanhã!!!!







12 comentários:

De dentro pra fora disse...

Então boa noite...
passo por cá amanhã :)

BlueVelvet disse...

Si,
amanhã passo para a comentar.
Hoje não foi um bom dia. Passei-o com o meu pai na Cruz Vermelha.
Beijinhos

Vera disse...

A devoção de quem ajuda, protege e ama os sem-abrigo das nossas ruas. A necessidade de uma palavra amiga, de uma sopa quente, de um cobertor quente, de quem vive sem abrigo nas nossas ruas. E, depois, a própria solidão de quem optou por dividir a sua dando um pouco de companhia a outros, não os fazendo perceber que há mais solidão do que se pensa, para além do frio das ruas.
Adorei Si! Aceito o chá! Levo Areias de Cascais!

ANTONIO SARAMAGO disse...

Vivência de rua!
E muitos de nós olhamos com a maior das indiferenças para estas pessoas.

Patti disse...

Aguardo ansiosa pelo fim, mas posso já adiantar que desde muito miúda tive sempre só e unicamente um tipo de heróis: estes.

Filoxera disse...

Estes são retratos muito mais comuns do que gostaríamos que fossem, infelizmente.
Beijos.

Si disse...

De dentro para fora,
Obrigada e boa noite.
Prendinhas

Si disse...

Velvet.
Passe sim, porque ao passar espero que queira dizer que tudo correrá pelo melhor.
Prendinhas azuis

Si disse...

Vekiki,
A realidade é bem mais dura, como poderá ler amanhã.

P.S.Areias?? De Cascais??
Deixa-me pôr já um saquinho de chá de jasmim paa acompanhar!!
Prendinhas

Si disse...

António,
Somos todos cúmplices, quando dizemos a nós mesmos que é o receio de enfrentar estas realidades que nos impede de estender uma mão. Não é receio, é mesmo egoísmo.
Prendinhas

Si disse...

Patti,
Espero corresponder às expectativas.
E para mim também. Partilhar o que quase não se tem é um acto muito maior do que distribuir migalhas para aliviar consciências.
Prendinhas arejadas

Si disse...

Filoxera,
E tendem a aumentar, porque esta é apenas a face mais visível. A miséria escondida pela vergonha assola muitos lares em qualquer ponto do país.
Prendinhas