segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Aurora, a telefonia e o violino



Tal como seria de esperar, quando casei, ganhei uma sogra. Não daquelas sogras intrometidas e de pêlo na venta, das que fazem jus às anedotas e arrepios dos maridos, mas das outras: as de que ninguém fala, porque nos fazem lembrar a nossa própria mãe e ninguém se permite admitir que possa haver outra mulher, para além dela, de quem possamos gostar tanto.


No presente, a Aurora, carrega, ainda com uma surpreendente agilidade, o peso de uns 80 anos enxutos, apenas beliscados pela osteoporose nas cruzes e pelos joanetes doridos. Viúva há quase dois anos, do homem com quem partilhou mais de 50 da sua vida, mantém uma independência notável dos 4 filhos que lhe sairam das entranhas: todos os dias se levanta cedo, faz a cama, vai à mercearia e à padaria e prepara o almoço para si, para os filhos e para os netos, que por ali perto trabalham e estudam e que gostam de a ver ocupada; duas vezes por semana faz hidroginástica e, de Verão, noutros tantos dias, faz caminhadas, à volta do bairro social onde fez crescer os filhos, sempre limpos e arranjadinhos, saudáveis, educados e trabalhadores. O mesmo bairro onde mora há 45 anos, testemunho da mulher já madura em que se tornou e da vida que nunca lhe foi fácil.
É que a Aurora nunca teve luxos.
Desde os 5 anos, habituou-se ao trabalho duro de sair de madrugada com a madrasta e trouxas de roupa à cabeça, para irem lavar no rio e pôr a corar nas bouças.
Fez-se moça bonita, de dentes muito brancos e olhar por cima do ombro, no meio perfil que as fotografias da altura usavam.

Só namorou 2 rapazes.
O primeiro morreu-lhe nos braços, seco de tísica, o segundo, casou-a, fecundou-a e amou-a todo o tempo que teve neste mundo.

Não se arrepende de nada.

Com 4 filhos nos braços e pouco mais do que um ano na escola, fez sempre as contas certas de uma casa, com um ordenado só para dar de comer, vestir, calçar, pôr a estudar e não ficar a dever nada a ninguém.

E não esquece o passado.

Ela ainda é do tempo em que a canalha lhe fugia do açoite para ir surripiar fruta de pomares alheios, rilhar como maçãs cebolas cruas, com o sal que levavam de antemão nos bolsos, ir a pé para a praia, de marmita feita, Circunvalação abaixo, até Matosinhos, para poupar para o gelado os 10 tostões do eléctrico e, todos os dias, jogar a bola nas ruas, sem receio de serem atropelados por um automóvel, nem por algum adulto com segundas intenções.

É do tempo em que, apesar de tantas dificuldades, enfrentava a vida com alegria e boa disposição; tanta, que não parava de cantar, tanta, que o fado lhe saía pela garganta fora, entre o gastar da pedra do lavadouro e o pontear dos lenços de assoar ou dos coturnos do marido; tanta, que quando a voz não se ouvia, o bairro estranhava e perguntava "Então, ó 'rórinha, a telefonia não toca hoje??"


Hoje a Aurora já não canta. Os anos enrouqueceram-lhe a voz, mas a memória das letras continua fresca como dantes.
E é por isso que tanto gosta de ouvir os fadinhos da Festival, quando a noite se aproxima e a ponta de solidão se faz sentir. Sentada na poltrona gasta, sorri para si mesma com as malandrices das cantigas do Neca Rafael, trauteia as melodias da Maria Clara ou da Hermínia Silva, recita de cor e salteado qualquer tema da Amália...

E é por isso, que sempre que o La Féria estreia um musical, a levo ao Rivoli.

Já assistiu ao "Amália", ao "Jesus Cristo Superstar", ao "Música no Coração" e, mais recentemente, ao "Violino no Telhado". Veste-se sempre a rigor, dando um toque especial à sua austera simplicidade: um jeito com o pente ao cabelo branco, um colar de pérolas, um pouco de base e rouge, um toque de baton, a carteira dos casamentos....nada de espalhafato, principalmente para quem só agora começa a vestir algumas peças com tons de branco, para aliviar o luto.

A rotina é sempre a mesma: sair de casa antes das 8 da noite, levantar os bilhetes no teatro, comer um prego em pão no café da esquina e esperar pelo toque do sino e pela voz gravada do António Sala que anuncia que o espectáculo vai começar.
Desta vez, a sala estava cheia, tão cheia que tiveram que pôr cadeiras extra para sentar todos os que naquele sábado quiseram ver o José Raposo, a Rita Ribeiro, o Joel Branco e o resto do elenco.

As luzes apagaram-se, mas o rosto da Aurora iluminou-se e os olhos brilharam. Aos primeiros acordes musicais, a testa da Aurora, sempre encorrilhada pelas preocupações da vida, alisou e o sorriso abriu-se....Olha como ela canta tão bem......Que bonitos fatos eles trazem.....Então, mas aquela coisa anda à roda?? Eles inventam cada uma... Está magro o José Raposo, mas quem está linda, linda é a mulher dele, que agora até estão divorciados...Sabes, filho, aquele actor que faz de mau é muito amigo do teu primo Zé, quando nasceu o Pedrinho ele foi lá à maternidade e tudo.....Já vai acabar?? Já?? Olha que peninha, está-se aqui tão bem....Foram duas horas e meia; no intervalo das falas, a Aurora bebeu as canções, espantou-se com a agilidade dos cossacos, arrepiou-se com as vozes, riu-se com as tiradas, bateu palmas até lhe doerem as artroses das mãos e até gritou um "BRAVO!!!" na apoteose final.

Ao cair do pano, Aurora dos Santos, singela até no nome completo, estava satisfeita com mais um musical... Sim, senhora, muito lindo...a prima Leta também havia de vir....ela também gosta muito destas coisas e eles trabalham muito bem....Ó Mãe, se quiser eu arranjo bilhetes para si e para ela, vêm as duas e vê outra vez....Não, filho, neste não.... podias ter-me feito isso era no Música no Coração.... Ai é?? Mas então gostou ou não gostou deste??.. Gostar, gostei, mas gostei mais do “Música no Coração”....têm todos canções muito bonitas, mas é que desse eu já conhecia a história.

27 comentários:

salvoconduto disse...

Eita, que é uma mulher do norte!

Um abreijo para a "Rorinha" que me faz lembrar outra grande pessoa...

Vera disse...

Lindo!

R.L. disse...

Texto simplesmente, ternurento.
Gostei muito.
Tem a rara capacidade de dar vida aos textos, e de fazer parecer aos leitores, que conhecem a "personagem" há muito tempo.

ANTONIO SARAMAGO disse...

Quem descreve assim uma Sogra é porque realmente merece ser ENALTECIDA.
Por muito boa que uma Mulher seja, porque será que quando chega ao lugar de SOGRA, alguém tem sempre um defeito para apontar.
Felizmente que ainda existem pessoas a saber reconhecer o lado BOM!

Tretoso Mor disse...

Si,

É bom termos pessoas sãs junto de nós.

Já nos bastam as TRETAS do dia-a-dia.

Tretices grandes para Si.

http://tretas-da-vida.blogs.sapo.pt/

Rosa dos Ventos disse...

Este teu post comoveu-me!

Abraço

BlueVelvet disse...

Si,
só mesmo um texto destes para me pôr bem disposta depois do dia de ontem.Este tempinho em que um dia faz chuva e outro sol, troca-me as voltas. Já não posso andar de sandálias, mas ainda não é tempo de botas.
Saem os casaquinhos de malha mas nada de visons, raposas argentées ou zibelinas.
Enfim, uma camada de nervos.
Mas este texto e esta música!
É que tenho sempre uma admiração grande pelas mulheres que enaltecem as qualidades das sogras. Odeio andotas de sogras.Há imensas sogras maravilhosas como há noras execráveis.
Pelos vistos aí em casa reina a harmonia. E a descrição da sua fez-me lembrar a minha avó. Também era assim. Com uma diferença: no tempo dela o que não perdia era uma revistinha no Parque Mayer, uma peça no antigo Monumental, tudo seguido de um lanchinho na Ferrari.
Quanto aos musicais do Filipe La Féria não perco um e este faz-me sempre lembrar o filme, sobretudo aquele cena fabulosa em que o Topol, uma noite, olhando para o Céu, tem o seguinte diálogo com Deus:
-Ó Deus, eu sei que nós somos o povo escolhido, mas não podias, de vez em quando, escolher outro?
Parabéns. Adorei.
Boa semana e beijinhos de mim par SI

Patti disse...

Que homenagem excelente fez à sua sogra. E é muito merecida bem se vê.

E que bom ela manter-se assim activa e dinâmica, com interesses pessoais, com actividades semanais, rodeada da família e principalmente dos netos, que são tão importantes para os últimos tempos de vida dos avós. Acho mesmo que são os netos que os fazem esquecer que o fim pode estar próximo.

Os velhos e as crianças são dois lados da mesma moeda.

Beijinho para a sua Aurora.

De dentro pra fora disse...

Que bom poder falar assim de alguém que sem ser tua mãe bem o poderia ser...eu também tive uma sogra, continuo a ter só que agora ela vê-me de um outro plano, espero que esteja a olhar por mim, por nós, já que quando ela precisou também o fiz e faria tudo novamente se assim fosse preciso :)

Um beijinho ás sogras que nos lembram as nossas mães :)

Si disse...

Salvo,
É mesmo, com sotaque carregado e tudo!
Obrigado pela visita e pelo comentário.
Prendeijas

Si disse...

Vekiki,
Olá vizinha! Quer um cházinho acabadinho de fazer??
Prendinhas maternais

Si disse...

R.L.
Obrigada pela visita.
Só escrevi o que me ia na alma.
Prendinhas e volte sempre, sim?

Si disse...

António,
Não podia ser de outra maneira.
É claro que todos temos os nossos defeitos e a Aurora também os tem, mas não podia cometer uma injustiça dessas. Dizer mal dela, só mesmo na frente dela e com um sorriso de quem lhe perdoa de imediato essa possível insignificância.
Prendinhas

Si disse...

Tretoso,
Que bom vê-lo por aqui.
É dessa sadia personalidade e da muita inocência, que apesar dos seus 80 anos, ainda carrega, que eu mais gosto.
Prendinhas da treta

Miepeee disse...

Fabuloso....ate me fez chorar. Estava a ler o texto e a rever a minha avo que infelizmente ja faleceu.
Beijinho.

Gi disse...

Ainda bem para a SI que tem uma sogra assim, e ainda bem para ela por ter uma nora que tanto a acarinha e a reconhece.
A Aurora (nome de fada da Bela Adormecida) tem uma telefonia, um violino e um telhado sob o qual há muito amor.

Si disse...

Rosa,
Obrigada.
Que os bons ventos a tragam sempre por aqui.
Prendinhas

Si disse...

Velvet,
Vá lá que o mau humor finalmente saiu do armário!! rsrsrsrs
Gosto mesmo muito desta senhora, e fazê-la feliz com uma simples ida ao teatro, é algo que não deixo passar.
Prendinhas azuis

Si disse...

Patti,
É merecida, sim e muito.
Tanto para ela como para o marido, que já não está deste lado da vida, a família sempre foi mais importante do que tudo e os netos, então....ai, os netos....

P.S. A minha Aurora aceita, reconhecida os beijinhos e retribui concerteza.
Prendinhas arejadas

Si disse...

De dentro para fora,
Felizmente ainda tenho as duas: a sogra e a mãe, para dar os miminhos que ambas merecem.
Obrigada pela visita, sempre!
Prendinhas

Fatima disse...

Que bonito este post.

Si disse...

Miepeee,
Obrigada e não fique triste, porque as pessoas de quem gostamos verdadeiramente estão sempre vivas na nossa memória e no nosso coração. É assim que eu penso em relação ao meu sogro.
Prendinhas

Si disse...

Gi,
Felizmente, não me posso queixar. A felicidade também se procura e encontra nestes pequenos gestos.
Obrigada pela visita.
Prendinhas

P.S. Agora que fala na Bela Adormecida, já entendi o gosto que minha Aurora tem em dormir uma sonequita depois do almoço!! rsrsrsr

Si disse...

Fatima,
Seja bem vinda.
Obrigada e volte sempre que quiser.

Filoxera disse...

Que bom, essa D. Aurora ser assim e ter-te calhado uma sogra tão independente e boa pessoa.
Beijos.

Si disse...

Filoxera,
É muito bom, sim.
E embora lhe custe, não há Domingo que não venha andar a pé no Parque da Cidade, enquanto os filhos dão uma corrida e ela exercita as pernas e o "dar à língua" com quem a acompanha. É um amor de pessoa.
Obrigada pela visita.
Prendinhas mornas

Isabel Maria Mota disse...

Que lindas palavras, tão carregadas de afectos. E que bom lembrar hoje esta "infância" que se surpreende, cativa e excita com a alegria da música e a surpresa dos dias. E que bom estar disponível para saborear, partilhar e acompanhar dias tão bem constriuídos pela lucidez daqueles que amamos. Aproveitem ao máximo! Um dia "estas crianças" irão crescer, mudar-se e cada um destes momentos passará terá um valor incalculável nas nossas lembranças e marcar-nos-à na nossa velhice. Muito bom. Muito obrigada. Também encontro muitas destas crianças nos meus dias de voluntariado e nada é mais recompensador que, em alguns casos que não este, arrancar um sorriso a algumas dores mais fortes. Mas vale tanto, tanto a pena!
Isabel Mota - Milharado