quinta-feira, 30 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível - Final da Patti


texto integralmente da autoria da Patti

E foi nesse inverno que a conheci. Isto é, já a sabia de vista desde sempre, mas nunca lhe tinha dirigido a palavra, ou ela a mim. Eu era uma simples miúda, humilde e com pouca instrução, filha de um dos muitos trabalhadores do pai dela e o meu papel ali, não era conviver ou misturar-me com quem não devia, mas sim ajudar a minha mãe nos trabalhos da casa e cuidar dos meus irmãos. Não passei da terceira classe, mas a minha professora continuou a ensinar-me tudo o que sabia, aos domingos de manhã, mesmo antes da missa.

Depois dela falar com os meus pais, sobre a minha esperteza e queda para os livros, passei com distinção no exame da quarta classe e consegui ainda, acabar o liceu. Mas nunca soube o que era brincar e muito menos, o que era viver como a Margarida vivia e deitar tudo a perder. Apesar de uma existência pouco feliz até ali, a Margarida viveu sempre no conforto, amparada pelo dinheiro da família, pelo amor da Joaquina e pouco ou nada, sabia das nossas dificuldades diárias; quantas horas trabalhávamos, o que comíamos, o que vestíamos…quem éramos.

Menina protegida, optou por recolher-se no seu canto, atirando responsabilidades ao desgosto e à saudade da partida da Sara em vez de reagir e assim viveu, prostrada e sem motivação. Ora eu e todas como eu, não tínhamos cá tempo para amuos, fanicos e tristezas. Ou se tínhamos, não sabíamos que podíamos ter. A Margarida só acordou para a realidade do que a rodeava, quando a Joaquina lhe falou da família do Augusto Pires, irmão da minha mãe.

Se calhar, foi isso que a salvou, pois o povo não esqueceu a ajuda que ela dera ao meu tio, nos seus últimos tempos de vida. Mas as minhas gentes mantinham a desconfiança em relação a ela, afinal, para além desse generoso auxílio, ela nunca demonstrara qualquer preocupação ou interesse connosco e esse rompante, de ir viver com a Joaquina e não seguir com a família para o Brasil, não nos revelava qualquer coragem, mas sim, muita imprudência e ingenuidade, próprias de quem está habituada a tomar decisões, sabendo que haverá sempre uma rede que lhe sustente a queda. Não sei se ela pensou, que ia continuar a ter a vida facilitada, apaparicada pelos mimos e atenções da Joaquina. Nem nunca lhe perguntei, mas se pensou, tirou rapidamente o cavalinho da chuva. A Joaquina era pobre e nunca tivera nada de seu, a não ser a dedicação infinita à família dos patrões.

O pai da Margarida tinha-lhe deixado muito pouco antes de partir, pois os seus bens não seriam vendidos assim de repente e ao desbarato, era necessário esperar pela acalmia e pela estabilidade política, para auferir algum lucro e além disso, ele tinha uma família para sustentar e uma viagem dispendiosa a caminho. Estou farto dos teus chiliques e dos teus caprichos de menina mimada, gritou ele furioso, levantando a mão para a mãe da Margarida parar de chorar. Detestava pieguices, raios partissem as mulheres! Fica se quiseres. Toma, vende. É só isto que te posso deixar. E passou-lhe para a mão o relógio de ouro que fora do seu avô. Aprende a viver com o que terás a partir de agora e valoriza-o. E foram-se.

Acredito que os primeiros tempos tenham sido muito difíceis para ela. Os atributos de menina prendada, como bordar, tocar piano e falar francês, não lhe serviam de nada na sua nova situação e a nós muito menos, até nos estorvava. Tudo na vida rural, por incrível que vos possa parecer, era para ela uma verdadeira novidade. Como era possível, que uma rapariga nascida e criada numa propriedade que no fundo lhe pertencia, com dezenas de trabalhadores, que sustentavam a sua família, não entendesse nada de nada?, dizia o povo à noite na taberna.

Quando a Joaquina nos apresentou, não sei qual de nós as duas ficou menos à vontade, se eu, por continuar a vê-la como a patroa da casa grande, se ela, envergonhada com as perguntas da Joaquina, é a Elvirinha do Chico, menina, cunhado do Augusto Pires. Não te lembras dela? Nasceu aqui e também era amiga da tua Sara. Costumava vir à cozinha, para eu lhe dar os restos do jantar, para levar à família, que são uma data deles. Até eu fiquei incomodada com a conversa da Joaquina. A Margarida então, quase que me pediu desculpa com o olhar baixo, sem jeito, preso no chão. Não fazia ideia de quem eu era, nunca ouvira falar de mim, nem do meu pai que trabalhava para o dela há mais de trinta anos.

Primeiro ensinei-a a tratar da horta, plantar e colher tudo o que era necessário, para manter a sobrevivência de todas aquelas famílias, que ficaram a explorar a propriedade dos patrões e a usufruir dos lucros daquilo que cultivassem e conseguissem vender. Era o acordo do patrão com os seus empregados. Sempre fora autoritário e duro com eles, mas igualmente muito justo. Mandou chamar o meu pai. O solar fica fechado, mas os terrenos não se podem perder. Quanto a eles, continuam a ser da minha família, mas entrego-vos para que cuidem bem das terras, como sempre fizeram e tudo o que plantarem e colherem é vosso. Está tudo aqui escrito e assinado neste documento que te deixo, Chico. Qualquer assunto, tratas com o meu advogada, lá na vila. É tudo o que posso fazer no momento. Se um dia eu regressar, voltaremos a falar e vocês não serão prejudicados neste nosso trato, isso vos garanto, que sou homem de palavra.

E assim foi, formaram uma cooperativa, colocaram os problemas na mesa, resolveram as decisões a tomar e entregaram-se ao trabalho naqueles campos a perder de vista, onde eu lhes levava o farnel todos os dias. A Margarida, quis ajudar-me nas entregas da comida e pediu para a Joaquina a ensinar a cozinhar. E até que nem se deu nada mal, não senhora! A rapariga até tinha jeito para a coisa. Juntas, preparávamos as refeições para toda aquela gente, que ao meio-dia já estava esfomeada e afianço-vos, que a tarefa era bastante complicada e muito cansativa, mas ela portou-se à altura. Já estou a descansar e a bordar paninhos inúteis há muitos anos, agora quero e preciso de contribuir e sentir-me útil. O meu pai tinha razão quando me disse, que vivesse com o que tivesse e que lhe desse valor. E o que tenho agora é isto: trabalho.

E foi numa dessas deslocações na carroça da quinta, onde todos os dias sem excepção, transportávamos o farnel ao pessoal que estava na lavoura, que a minha amiga Margarida e o meu primo José Pires se cumprimentaram pela primeira vez.

Novos ventos, novas vidas, novas expectativas, novas promessas, novas canções, novos sonhos …Muitos deles cumpridos mas ainda, muitos e muitos mais que faltam cumprir.


Adenda: Esta maratona de finais deixou-me exausta. Até dia 5, vizinhança!!

Adenda 2: Mas amanhã, ainda há a surpresa prometida, ouviram???

quarta-feira, 29 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível - Final inspirado pela Gi


Enquanto a família se mudava de bagagens, que as armas por cá ficavam, Margarida mudava, literalmente, de bagagem e de vida.
Tendo sido a primeira mulher na família a conseguir um curso superior, foi também a primeira a trabalhar fora de casa. Tornou-se professora de Português e Francês, na Escola da Vila, passando a fazer parte das grossas fileiras da função pública de então, garantindo, assim, o seu sustento e o de Joaquina.
Entre o trabalho e os braços da fiel ama, para os quais voltava todos os dias, Margarida foi enxugando as saudades da família, cujas notícias chegavam a conta-gotas, dando conta que as incertezas ainda eram muitas, naquelas vidas viradas de pernas para o ar, e em que a contagem decrescente do tempo terreno dos pais, impunha que eles voltassem ao princípio de tudo.
Entretanto, na Vila, os ânimos iam acalmando, as razões gritadas, transformadas em palavras mais serenas, algumas até, já só se ouviam encolhidas em murmúrios de vergonha pelos excessos. Afinal, nada se conseguia sem trabalho árduo, e a pouco e pouco, cada um foi retomando as suas tarefas diárias, numa terra que só lavrada dava de comer a quem tinha fome.
Passaram 3 anos.
O Solar, agora deserto, corria o risco de ficar ao abandono, quando Margarida recebeu a notícia que seu pai ficara gravemente doente, pelo que deveria regressar a Portugal. Com a ajuda de Joaquina e de José, tentou repor o brilho na casa, lavando, esfregando e pintando, apagando, enfim, os vestígios de recordações pouco felizes que deveriam dar ao pai o sossego merecido. Voltava apenas com a mãe, porque os irmãos já tinham traçado destinos diferentes e nadavam agora à vontade nas águas tépidas dos negócios do Rio de Janeiro. Pouco tempo depois do seu regresso, morria, não sem antes ver Margarida casar com José.
A relação de ambos tinha começado pouco depois da ocupação das terras. Tendo sofrido na pele os amargos da prisão, José era um homem amadurecido à força, que sabia que os extremismos, em qualquer direcção, só levavam à desgraça. Foi ele, portanto, que fez a ponte entre Margarida e os trabalhadores, gastando horas infinitas no diálogo e na negociação, tomando decisões consertadas e organizando o trabalho que não podia deixar de ser feito. Ganhou o respeito e a admiração de todos, revelando uma faceta intrépida de homem justo e ponderado, por quem Margarida acabou por se apaixonar ou, quem sabe, por depositar o seu desejo de segurança, já há tantos anos roubado.
Nunca tiveram filhos.
Para Margarida, os seus filhos foram sempre os seus alunos, filhos e netos dos trabalhadores da quinta, a quem dedicou por inteiro a sua vida. Hoje, apesar de já reformada, e com José responsável pelos destinos da Autarquia e das terras, Margarida ainda dá explicações em casa, numa sala especial do Solar, apelando a toda a sua infinita paciência para a falta de interesse dos alunos, tal como fazia quando bordava intricados moldes. Manteve-se simples e intocada, amiga de ajudar e de ensinar e triste, cada vez mais triste, com a ignorância do povo que resolveu não abandonar, enfrentando, todos os dias, outras revoluções, neste Ensino que tanto ama.

Adenda: Os conteúdos deste post e do infra publicado, são interpretações pessoais das ideias enviadas por mail pelos bloggers identificados nos títulos de cada um.

terça-feira, 28 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível - Final do Tretoso


Margarida reuniu os poucos pertences que lhe diziam alguma coisa, daquele Solar onde o mundo girava dentro dos seus aposentos e entrou na casa de Joaquina com uma pequena mala de roupa. Afinal, a casa era exígua e não seria prático nem sensato impôr a sua presença de uma forma ostensiva, nem tão pouco quereria transportar consigo o que pretendia esquecer.
Como antes, quando regressava do Colégio, Joaquina recebeu-a de braços abertos, num aconchego forte, de fazer desejar ficar aninhada no seu colo para o resto da vida, levantando um muro protector à volta da sua menina, que, agora, mais do que nunca, continuava a ver como sendo sua.Só quando, à noite, no quarto espartano que ocuparia a partir daí, Margarida tentou adormecer, se deu verdadeiramente conta das mudanças profundas que a sua teimosia em ficar iria provocar; convicta de que teria de decidir rapidamente o que seria o futuro e porém tão insegura das consequências das suas próprias atitudes.
No dia seguinte, acordou sobressaltada com mais gritos e vozes exaltadas. O Sr. Jaime, que deixara de ser capataz na quinta, no momento em que os donos tinham partido, mas que ainda não tinha consciencializado o facto, tentava impedir que um grupo de trabalhadores entrasse dentro do Solar para se apropriarem dos bens que por lá teriam ficado abandonados. Sozinho, pouco poderia resistir às invectivas dos seus ex-subordinados, que agora cresciam em razões inflamadas, pelo que viu Joaquina sair pela porta fora a apelar ao bom senso daqueles que conhecia desde catraios de cueiros sujos; Margarida seguiu-a, logo reconhecendo no líder do grupo, a figura alta e magra de José.
Ó Zézito, tu devias ter vergonha nessa cara, ouviste, meu desgraçado?? Agora atiras pedras a quem te deu de comer ainda tu nem sabias o que era fome e tanto ajudou o teu pai? perguntava Joaquina com as mãos levantadas à altura da cabeça. Tem juízo, rapaz, que já passaste e fizeste passar por tanto, que tu, melhor do que ninguém, devias saber o que é castigar quem nunca fez mal nenhum, seu desmiolado!!
Mas José não desistia e caminhava a passos largos para a entrada principal, tentando forçar os portões, abanando-os com força. Tome. Se quiser entrar, escusa de estragar. Eu tenho a chave. Margarida estendia-lhe o molho das chaves do Solar, enquanto, atrás de si, se fazia um silêncio incrédulo. Menina! exclamou Joaquina, É a sua casa, onde nasceu, não se pode... Deixa, Joaquina, quer queiramos, quer não, iam acabar por entrar. Melhor que o façam pela porta da frente, sempre é mais digno do que parecerem ladrões vulgares. E entregando o chaveiro nas mãos de José, virou costas e desandou.
Serviram-se do que puderam e quiseram. De faqueiros a medicamentos, de toalhas de mesa em puro linho à televisão e ao rádio da sala, transportados para o café da vila, onde passaram a reunir-se para ouvir as notícias do RTP e do Rádio Clube Português.
José quis devolver as chaves, Margarida não aceitou, num desprezo furioso e sentido. Que ficasse com elas e lhes fizesse bom proveito, já nada havia naquela casa que lhe dissesse alguma coisa, atirou, fechando-lhe a porta na cara.
Foi o início da perseguição; José não admitia ser menosprezado por uma mulher, Margarida não admitia a falta de consideração e de respeito, a revolta demonstrada contra quem nada tinha feito para a merecer. Uma raiva mútua, alimentada de cada vez que os seus olhares se cruzavam, no caminho dela para a carreira que a levava até à cidade vizinha, onde dava meia dúzia de explicações de Francês.
Um dia, ele obrigou-a a parar o seu passo apressado. Colocou-se à sua frente e olhou-a de alto a baixo, reparando nos pormenores das golas e dos punhos da sua roupa a ficar desgastados, nos sapatos a ficar cambados. Com um ar de riso trocista, roubou-lhe, de repente, um beijo na boca e nem o sonoro estalo que recebeu como resposta lhe tirou o ar gozão. Pelo contrário. Antes de a deixar, perplexa, no meio da rua, ainda teve a lata de lhe segredar ao ouvido: Aprenda, Menina Margaridinha, que a vida não é ficar fechada num quarto, com uma criada a mudar-lhe as fraldas. Se quer liberdade, tem de a conquistar, como nós fizemos!

Joaquina nunca lhe perdoou a desfeita com a sua menina, nem tão pouco compreendeu quando, rendida pela falta de um trabalho para o qual nunca se tinha preparado e pelas investidas cada vez mais frequentes e agressivas de José, Margarida acabou por sair da sua casa, aceitando, assim, as consequências da sua impulsividade; pôs de lado o orgulho e anuindo juntar-se a ele, numa união de facto, porque a instituição do casamento era reaccionária, acabou por lhe dar dois filhos, que nunca chegaram a conhecer avós nem tios e que hoje ainda sabem de cor as histórias da prisão e libertação de José Pires, herói revoltoso da reforma agrária em Vila de Cima.

sábado, 25 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível # 8 (final)


Assim chegou a Liberdade ao espírito de Margarida. Revoltou-se. Tornou-se senhora de si própria, das suas vontades, em vez de se amarfanhar, medrosa da voz potente do pai, incapaz de desobedecer à mãe, submissa aos irmãos, tal como tinha sido a vida toda. Deixou-os partir em direcção ao seu próprio destino e ficou com Joaquina, decidindo, logo nos primeiros dias, que, em vez de enfrentar os ânimos irados dos trabalhadores da quinta, iria tentar dialogar, negociar com eles o melhor aproveitamento das terras, que revolucionariamente, reivindicaram para si próprios como compensação dos direitos não concedidos durante tantos anos.
De menina protegida pelo internato rigoroso no Colégio de S. Gonçalo, transformou-se em mulher informada, activa, pró-activa e determinada a fazer a diferença. Anulou inflamações partidárias com bom senso, serenou sentimentos reprimidos com justiça, adormeceu friezas com o calor do sentido prático, dividiu, para unir à sua volta, a Vila que a vira romper com o seu próprio casulo.
Todos os dias surgiam novas ideias e, rapidamente, o Solar se transformou em Centro Comunitário, onde todos partilhavam tarefas, haveres e necessidades, e onde Margarida começou a dar aulas aos mais velhos, ajudando-os a aprender a ler e a escrever, a fazer contas de somar e a multiplicar afectos, bem explicados em letrinhas redondas, feitas a lápis, com mãos trémulas de ansiedade por entrar num novo mundo.
Um deles, foi José.
Aluno aplicado, atento, e muito reservado. Aprendeu primeiro do que todos a assinar o nome e a ler as entrelinhas dum futuro próximo, com crescente admiração por Margarida, tendo sido o mais forte impulsionador da sua candidatura às primeiras eleições autárquicas de 12 de Dezembro de 1976, que ela ganhou, quase por unanimidade.
Entre o trabalho e a dedicação à Vila e a Joaquina, a quem os anos já começavam a pesar, Margarida nunca chegou a pensar em casamento. Tornara-se tão livre, que marido algum poderia vir um dia a atalhar-lhe a vontade de realizar os seus próprios desejos, a liderança segura e capaz de mulher completa.
Dois anos depois, recebeu uma carta.
Na caligrafia redonda e perfeita de José, leu as quatro linhas da mensagem:
Já consegui trabalho a poucos quilómetros de Paris. Eu e a Sara devemos casar daqui a dois meses.
Dá beijos à 'Quina.
Nunca vos esqueceremos.
José.

'Quina

sexta-feira, 24 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível # 7


Aos gritos e vociferando ameaças, os trabalhadores da quinta foram ganhando terreno, instalando-se perto do Solar, em círculos vigilantes à volta de fogueiras alimentadas noite e dia pela lenha e pelos calores de espíritos incitados. Exigiam propriedade sobre, exigiam direito a, exigiam com um verbo até ali nunca conjugado: reivindicar.
Lá dentro, Joaquina dividia a alma em dois, rachada pelo meio do amor que tinha à sua família de sempre e do carinho que nutria por grande parte dos que estavam ao relento, na sua maioria jovens que tinha visto nascer e crescer, alguns acabados de voltar das Colónias, mais velhos e mais pesados no olhar, vazio já das inocências arrancadas a G3.
Em silêncio, a mãe de Margarida enchia as malas com roupa e os baús com partes da casa escolhidas à sorte, pegadas e levadas pelo instinto momentâneo e irreflectido de quem executa uma tarefa automaticamente, misturando, no mesmo fundo, pratas antigas com copos de cozinha saídos no 'Juá'. E ao jantar, que ninguém comeu, a sentença proferida pelo pai, revelou, por fim, o destino da família, a concretizar já nessa madrugada: partiriam para o Brasil, levando o que pudessem, para recomeçar, nas terras férteis de Vera Cruz, antes que o inverno das vidas de cá se instalasse, impelidos pela primavera que por lá despontava.
Muda e estraçalhada pelo peso da notícia, Margarida tentava reunir as ideias. Deixar a casa, deixar a sua vida, deixar Joaquina, deixar tudo para trás, parecia-lhe tarefa impossível de concretizar, muito menos em poucas horas. A pouco e pouco, o pouco ou nada que lhe tinham explicado sobre a situação do país, começava a fazer sentido, principalmente através de uma outra palavra que acompanhava os gritos dos trabalhadores acampados no pátio do Solar: revolução. Afinal, era o que lhe pediam. Que revolucionasse por completo a sua vida, cortando, para sempre, com as suas origens e lembranças. E não, não queria ceder. Para espanto de todos, enfrentou o pai, a mãe e os irmãos. Não valeu a pena gritar, mandar, ameaçar, pedir, suplicar. Estava decidida a ficar e mudar-se-ia para a casa de Joaquina, onde moraria até arranjar trabalho. E que nem lhe falassem em incertezas. Nada era mais incerto para ela do que atravessar meio mar e ir desaguar na vida de um brasileiro qualquer, desterrada numa roça, a vegetar em cacau ou bananas durante os quarenta ou cinquenta anos seguintes.

(acaba amanhã)

quinta-feira, 23 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível # 6


No início do mês de Março, Augusto começou a definhar. Mal de solidão, diziam uns, mal do coração, diziam outros, que de dia para dia lhe viam sumir-se a carne pelos ossos dentro e a alma a desprender-se pelo corpo fora, em discursos já desconexos.
Joaquina desdobrava-se em cuidados, Margarida mandou vir o médico vezes sem conta, mas de cada vez ele saía mais desanimado, com a cabeça a abanar e a esperança a desistir nos olhos de quem se cruzava.
Ainda aguentou a primeira semana de Abril, mas a segunda já a passou inconsciente, do lado de lá, do lado para onde partiria sem retorno, até que, finalmente, descansou, na madrugada de 20 de Abril de 1974.
Contra a vontade dos pais, a quem bateu o pé pela primeira vez na vida, Margarida foi ao funeral, agarrando Joaquina por um braço, sem se saber muito bem quem é que amparava quem. Com elas, o pároco e alguns dos vizinhos, mais curiosos de ver a 'Menina Margaridinha do Solar da Quinta Grande' a poucos metros de distância, embrulhada num lenço para a cabeça e nuns óculos escuros de grandes lentes quadradas, do que, propriamente por pesar ao defunto.
Já estava o caixão a descer à cova, quando o murmurinho se levantou e os olhos se reviraram em busca do motivo, que chegou dentro de um carro preto, abruptamente empurrado pela porta de trás, sem chegar a parar.
Alto, magro e com o cabelo meio desgrenhado, tropeçou ainda uma ou duas vezes antes de recuperar o equilíbrio e arranjar o casaco coçado e demasiado curto nas mangas. José, o filho de Augusto, acabado de sair do cárcere, chegava à Vila, no mesmo momento em que o Pai descia à terra, no mesmo momento em que alguém se lembrou de que ninguém o tinha avisado do acontecido.
Foi Joaquina, de braço dado com Margarida, que dele se abeirou, informando-o da triste nova, deixando-o confuso e atónito, num embasbacamento tal que as pernas lhe tremeram, lhe falharam por fim, deixando-o no meio do chão em choro convulsivo, órfão de mãe e pai de uma assentada só; na manhã seguinte, foi ainda com os olhos fundos de mais uma noite passada em claro, a pensar nos trambolhões da sua existência, que José viu nascer o último dia da sua vida tal e qual como a conhecia.
As consequências da Revolução de Abril de 1974, não se fizeram sentir logo naquela Vila, distantes que estavam dos grandes centros urbanos, e foi com algum receio que a população começou a acreditar que Portugal ficara, de repente, diferente dos 40 anos anteriores. Suspiros de alívio, ouviam-se, por toda a parte, era quando se recebiam as notícias referentes à Guerra do Ultramar, que davam como certo o final da contenda e o regresso à Metrópole dos que tinham de lá escapado com vida, alguns deles, filhos da Terra.
A Liberdade, não chegou, portanto, num dilúvio avassalador, mas sim numa maré viva, que antes foi vaza e foi cheia e que com a força dos acontecimentos se espraiou, lentamente, pelos caminhos desconchavados do interior Português, em rumores, em comentários, em atitudes ensaiadas e experimentadas às quais se iam medindo as consequências.
No Solar da Quinta Grande, o tema continuava a ser proibido. Nem o pai, nem os irmãos de Margarida se alongaram em explicações sobre o fenómeno, apenas referindo que as mudanças no país implicavam que 'deviam estar preparados', algo que ela interpretou de uma forma interrogativa e cheia de estranheza, principalmente quando viu a mãe a ir ao sótão buscar os baús e as malas de viagem.
A resposta chegou num dos primeiros dias de Novembro, e da forma mais inesperada: os trabalhadores da quinta juntaram-se todos à frente do Solar, gritando palavras de ordem, exigindo qualquer coisa, uma reforma, diziam, e que Margarida não compreendia. Como não compreendeu, quando o pai, de caçadeira em punho, se propunha disparar sobre a multidão, numa raiva incontida, que só os irmãos e o Sr. Jaime conseguiram segurar, antes que alguma desgraça acontecesse.

(continua amanhã)

quarta-feira, 22 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível # 5


Foi Joaquina que lhe falou, um dia, sobre o filho do Augusto Pires, um mancebo de nome José, que tinha sido preso ao tentar passar a salto a fronteira para Espanha, para fugir à guerra e tentar em França uma sorte melhor da dos seus pais, ambos presos também, mas à dureza dos turnos na fábrica de fiação. Entre um ponto e outro, foi sabendo mais pormenores da vida daquele casal, que agora passava dificuldades e pela vergonha de terem sido 'dispensados' do trabalho, ao fim de trinta e muitos anos agarrados às lançadeiras de metal que furavam mãos, às lãs que cortavam dedos, aos pós que irritavam tosses secas de brônquios entupidos.
A do Gusto, então, como lhe chamavam na Vila, estava num desgosto só, a sumir-se de dia para dia, encovada, amarelada e seca, de olhos sempre inchados de chorar pelo filho, pela miséria a que tinham chegado, de revolta com a vida, que um dia resolveu acabar com o remédio de escaravelho, bebido até à ultima gota, para ter a certeza que não voltaria. Ao enterro só foi o viúvo e o coveiro, o resto dos vizinhos espreitou pela janela, mas benzeu-se e rezou pela alma dela só no recato de cada casa. Com a mulher morta e o filho preso, Augusto viu-se sózinho, sem trabalho e sem dinheiro nem para comer. Margarida, condoída pela história que Joaquina lhe ia contando, e à socapa dos pais, disse-lhe para começar a pôr mais uma mão de arroz no tacho, mais água e couves na sopa, mais toucinho e galinha no cozido, mais farinha e fermento na massa do pão que cozia, dia sim, dia não, e levar pelas traseiras, por trás do tanque e do espigueiro, pelo caminho do Poço Quebrado, até ao casebre do homem.
Augusto ficava embaraçado pela gentileza, queria sempre recusar as ofertas, corado de uma vergonha funda, pelas reviravoltas da sua existência. Vá lá, 'Ti Gusto, não se amofine, é a Menina Margarida que lhe manda, alguém tem de cuidar de si, homem, para que cá esteja quando o Zézito sair da cadeia. Já viu o que é o menino ficar sem mãe nem pai, assim duma assentada? Ó 'Quina, tu não insistas, mulher, que eu não posso ficar a dever favores àquela gente. Não tenho como pagar, tu não entendes? 'Ti Gusto, faça-me lá essa fineza, não seja casmurro, senão a Menina Margarida zanga-se comigo; a não ser que não lhe caia no goto o pãozinho que hoje amassei, querem lá ver? Joaquina ia desembrulhando o farnel para cima da mesa. Olhe, se vocemessê não aceita, vai prás galinhas, que amanhã 'tá azedo e ninguém no come. E a sopa também, que o caldo tem que ser fresco. Só se aproveita o toucinho e então, já que não quer, levo de volta...Ó 'Quina, pronto, deixa lá ficar o pão e a sopa. Se é para deitar à criação, 'tá bem, aproveita-se... E o toucinho? Vai ou fica? Olha, seja pela tua alma, 'Quina, se há-de ganhar ranço em casa de quem só come fevera, deixa-o aí, que meto um naco no pão, e a sopa assenta-lhe em cima. 'Tá bem, 'Ti Gusto, que seja pela minha alma então. Já me vou. Ó 'Quina.... Sim? Diz à Menina Margarida que lhe agradeço e que também é pela alma dela, óvistes?
De farnel em farnel, a sobrevivência diária de Augusto ia sendo garantida, se bem que as mazelas marcadas em ossos vergados sobre o tear, o iam corcuvando e entortando as costas e as mãos, que mais pareciam, agora, bolas de dedos grossos, que o reumatismo articular deixava irreconhecíveis. Só a esperança de ver passar os dias em direcção à libertação do filho lhe fazia brilhar os olhos, baços que estavam das muitas lágrimas choradas em silêncio, só a visão da face corada de Joaquina o fazia ter a tal da esperança de ainda o ver antes de morrer.

No início do mês de Março, Augusto começou a definhar....

(continua amanhã)

terça-feira, 21 de abril de 2009

crónica de um tempo impossível # 4


Como previsto, no final do Colégio, Margarida foi para a Universidade, sendo a primeira mulher da família a consegui-lo. Formou-se em Filologia Românica, na Universidade de Coimbra, com média de 18,78 valores e um louvor da Reitoria, que a mãe logo encaixilhou, aproveitando os seus fundos de bordados a ponto cheio, cheios de flores, alguns com pormenores em casca de alho, que pacientemente enrolava e arredondava, secava e envernizava, cosia e pregava a formar cada pétala como se verdadeira fosse. Eram o seu passatempo.
Depois da partida de Sara, fechou-se em si mesma, insistiu em ficar sózinha no quarto do internato, recusou as propostas de ingresso noutros estabelecimento de ensino, frequentados por filhas de amigas dos pais e a imposição da sua convivência, decidiu avançar ao ritmo da sua própria dor, assim, tal e qual, sem interferências externas. O assunto tinha tido um ponto final, de exclamação, até, para lhe reforçar o encerramento, e Margarida, lá no fundo da sua alma, carregava o peso da pedra que lhe tinha posto em cima. Para sempre.
Ficava horas a fio, no sossego do seu quarto, no meio das suas linhas 'Anchor', dos tons dégradé, dos desenhos que imaginava ou retirava da revista 'Modas e Bordados - Vida Feminina', até que chegava a hora do recolher ou a Joaquina a vinha chamar para jantar. Fazia mais do que um de cada vez, para não se aborrecer, para conseguir imaginar outras variantes nos moldes, para colorir com outras nuances os espaços vazios, para fugir com a agulha e com a linha, para outros pontos, mais largos e mais resistentes, para outras paisagens, com flores, sempre com flores, porque era assim que imaginava o Paraíso.
Não foi muito do seu agrado, portanto, ter de regressar a tempo inteiro ao solar onde nascera. Entre as idas e vindas do Colégio e da Universidade, tinha criado o seu próprio espaço, muito interdito e exclusivo, onde só a Joaquina, muito de vez em quando, permitia entrar. Aquela mulher pequenina, roliça e de cabelos brancos apertados num puxo, cuja pele suava a ervas-de-cheiro, alfazema, alecrim, rosmaninho, misturados com pontos de açúcar amarelo, tudo fazia pela sua menina, a única menina da casa, a que tinha ajudado a nascer, antes do tempo, sem dar tempo a que a mãe fosse para o hospital. Tinha-lhe cortado o cordão umbilical e em vez de o deixar secar, mantinha-o rosado, cheio de um sangue que não era seu, mas que amava como se fosse.


Foi Joaquina que lhe falou, um dia, sobre o filho de Augusto Pires, um mancebo de nome José.....

(continua amanhã)



segunda-feira, 20 de abril de 2009

Ó Vizinhança, arranja-se por aí uma chávena de açúcar??


Pois bem, o assunto é este:
Preciso da vossa preciosa ajuda, num desafio que vos lanço:

Lembram-se do que escrevi aqui, aqui e aqui???

A partir de amanhã, e até Sábado, irei publicar a continuação destas 'Crónicas de um Tempo Impossível', respondendo ao repto que a Patti me lançou na altura, e que não esqueci.

Já estão todas escritas, com excepção da de Sábado, onde será revelada a conclusão deste conto.

E é aqui que vocês entram.

Até 6ª feira, para além dos vosso preciosos comentários, a cada uma das partes publicadas, vou desafiar-vos a imaginar um final, a ser publicado no próprio Sábado, dia 25 de Abril.

Deverão fazê-lo por mail, para o endereço de.si.para.si@gmail.com , sendo que a única juíza para este concurso será a 'je', decidindo, portanto, sem direito a apelos, qual dos finais melhor se enquadrará na sequência, entretanto já escrita. Ao(s) seu(s) autor(es) serão dados os devidos créditos, no dia da publicação, reservando-me, ainda, o direito a fazer uma mistura de vários finais, se isso melhor servir ao conteúdo.

Como prémio para este desafio, haverá uma surpresa, a atribuir no dia 1º de Maio.

Agora, façam o favor de ler, ou reler, as três publicações anteriores, e pôr essa imaginação a trabalhar, que a caixa do correio já foi esvaziada para melhor aconchegar as vossas participações.


'Bora lá???

sexta-feira, 17 de abril de 2009

intimidades


Para lá dos limites do meu recanto, baila-me a mente, num bailado sincronizado e funambulista, que me aproxima do céu, das nuvens e do ar mais rarefeito, mas puro. Percorro essa fronteira sem marca, com o conhecimento exacto dos limites do arrojo, da vertigem tentadora de saltar e seguir as aves que cruzam as alturas.
Inspiro profundamente, enchendo os pulmões, a ganhar alento para novas batalhas com o corropio irrequieto dos pensamentos, a tentar segurar as palavras indomadas e bem oxigenadas que me irão sair pelos dedos fora, enquanto, já cansada, regresso, saciada, ao meu espaço íntimo, que guarda, preciosamente, os segredos de ser eu.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

clarividências


Não foi um sonho, nem um pesadelo. Talvez um instinto, um sexto sentido, que se passeou pela mente, displicente, insinuador. Não quis aceitá-lo, mas tão pouco sabia como rejeitá-lo, quando a insistência se tornou evidente, um teimoso pensamento, sentimento avassalador, desconcertante clarividência, que dela se apossou.
Pensou e repensou. As imagens fluíam, em veloz catadupa, num instante fugiam, montadas na garupa de um qualquer corcel, que as levava adiante, dando lugar a mais uma, que, sem querer, voltava mais voltas dum alucinante carrocel.
Presa, naquela roda viva, revoltava-se e não queria. Não pretendia saber, o que tantas e tantas vezes, ouvira dizer que não se sabia. Não queria ver as faces iradas, as retinas raiadas dos poderosos e vingativos, que não hesitariam em tornar efectivos, castigos monstruosos pela ousadia. Fechou os olhos e, ao nascer do dia, fez um voto de clausura, calou-se para a vida, numa severa censura e dura penitência, da consequência sofrida por ser recebida no núcleo restrito, daqueles que às vezes, num acaso fortuito, ficaram sabedores dos segredos dos Deuses.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

(re)temperando


Deixou a terra natal, pelo bico de um beija-flor, que, beijando, a deixou cair, nas asas de um condor; partiu então, empurrada pelo vento leste, abrigada do frio agreste, sempre na mesma direcção. Buscando a certeza que nunca tinha tido, trocou o oriente pelo ocidente num tempo já ido, afirmou-se pela diferença, de ter sobrevivido ao embalo de naus, galgando a tormenta. Assim se fez senhora, jovem de outrora, madura de agora, que de corpo e alma se entregou, às paixões de quem logo a amou, numa relação apimentada e apaladada por esta flor de noz-moscada.

domingo, 12 de abril de 2009

knock, knock.....não é o compasso, mas......







....PODEM ABRIR, QUE SÓ VOS BATI À PORTA PARA VER O VOSSO SORRISO....


A TODA A VIZINHANÇA, E RESPECTIVAS FAMÍLIAS,

DESEJOS DE PÁSCOA FELIZ!!!

sábado, 11 de abril de 2009

sexta-feira, 10 de abril de 2009

sexta-feira santa: silencio...



Nota: A versão original, minha preferida, pode ser ouvida aqui

quarta-feira, 8 de abril de 2009

apenas uma questão...estará tudo doido???


Não costumo fazer posts sobre actualidades, a não ser em casos muito excepcionais.
Como hoje.
Ao abrir o site da TSF, deparei-me com o título desta notícia e respectivo vídeo.
A primeira pergunta que fiz a mim mesma foi 'como é que é possível um homem morto mostrar um vídeo??'
Aprofundando, li o resto.
Fiquei esclarecida e, tal como antes, dei razão ao post do Luís Eme, no 'Largo da Memória', que poderão ler aqui.

Homem morto nos protestos agredido antes pela Polícia, mostra um vídeo
Hoje às 06:20

O homem que morreu, na semana passada, na manifestação contra a cimeira do G20, foi agredido pela polícia antes de falecer, mostra um vídeo divulgado terça-feira pelo diário «The Guardian» na sua edição electrónica.
Ian Tomlinson, um vendedor de jornais de 47 anos, morreu de enfarte a 01 de Abril perto de uma manifestação em frente do Banco de Inglaterra, à margem da reunião que o G20 (países ricos e emergentes) realizou no dia seguinte em Londres.
Tomlinson, que não participava no protesto, sofreu um enfarte quando tentava passar um cordão policial a caminho de casa depois de terminar o trabalho no quiosque, situado na City, o centro financeiro da capital britânica.
No vídeo, gravado por um gestor de fundos nova-iorquino às 20:29 daquele dia, vê-se como o vendedor de jornais avança de forma descontraída, mãos nas algibeiras, seguido de perto por um grupo de polícias que parece convidá-lo a acelerar o passo. Um deles empurra-o então com violência pelas costas.
Ian Tomlinson perde o equilíbrio e cai por terra. Ainda consciente, fica sentado chão, parecendo invectivar os polícias.
Pouco depois, o homem sucumbirá a um ataque cardíaco, e nem os médicos nem os polícias conseguiram reanimá-lo.
O jornal entregou o vídeo à Comissão Independente de Queixas contra a Polícia (IPCC, siglas em inglês), que já na segunda-feira anunciou que investigaria se o vendedor de jornais tinha sido alvo de agressão, como denunciaram várias testemunhas.





É de mim, ou, realmente, está mesmo tudo doido???

terça-feira, 7 de abril de 2009

pecados pascais


Na sua cátedra entronizada, vestindo a alvura de tecidos abençoados, uma alma que dizem impoluta, escrevia um texto carregado de pormenores, pensado para, no Domingo seguinte, atentar o seu rebanho contra as investidas pecaminosas de um diabólico tentador sempre à espreita. E começava, dizendo:

Sabei, meus filhos, que ele, cujo nome não pronunciarei, está no meio de nós, nunca se sabendo que forma irá tomar de seguida.
Se o tomardes nas mãos, derreter-se-à ao toque, à temperatura da pele que marque apenas 36,5º; se o provardes, terá sempre um sabor delicado, alicorado ou trufado, podendo ainda ser amargo ou dulcíssimo; se o olhardes de frente, poderá ser negro, branco ou cor de leite, deleitando as papilas gustativas de permeio, que cedem, desmaiando a resistência do saber e do saboreado.
Pecado mortal, este, de luxúrias apaladadas, que se espalha em tentações variadas, cobrindo a sua nudez escandalosa com coberturas inocentes, na expectativa de exultar sensualidades impróprias, excitar gostos, provocar sensações, permitir proibidos, tal é o perigo.
E se a vossa alma está insegura, o vosso cérebro, esse, poderá ser o primeiro a deixar-se sucumbir a este fatal abismo: recaptador de serotoninas, libertador de endorfinas, a todo o momento explode volúpias equatoriais, em aromas intensos, solidamente encarcerados nas texturas que os homens mal intencionados inventam, ora lhe juntando um toque de café, ora o cruzando com caramelos, ora o deixando correr, livre e inconsequente, num rio, que nuvens brancas e firmes tornaram fofo e aveludado, para cair em taças incautas repletas de seixos amendoados.
Não refuteis estes avisos, meus filhos, que o Salvador não perderá a esperança em nenhum de vós, enquanto lutardes com a força das almas puras e a castidade de sabores profanos.
Que assim seja.

E pousando o aparo com que escrevia, segurou entre os dedos um 'Mon Chérie', que derreteu na língua, murmurando: Méa culpa, méa máxima culpa.

domingo, 5 de abril de 2009

confissões de domingo # 2



Com a Quaresma a chegar ao fim e a Páscoa a bater à porta, pelas mãos de compassos tilintantes, que recolhem proveitos numerários em troca de bençãos e ósculos, sinto uma inevitável força que me puxa para a reflexão, em torno de uma série de conceitos, dogmas, paixões e fés.

Sinto exacerbar-se o meu sentido crítico, para lá do que já se institucionalizou e banalizou criticar, com o aumento de oportunidades de negócio de ramos e folares, mais as compras do supermercado para a refeição familiar de Domingo, exactamente aquele em que se celebra a ressurreição de Cristo, depois de um Calvário sofrido e uma morte torturada e apetece-me repensar nos princípios de tudo.

Nos princípios, em que a compaixão, a caridade, a compreensão e a tolerância eram princípios, a idolatria, o orgulho, a ambição desmedida ou a ostentação de bens, rejeitados pela Palavra de quem, 2009 anos depois, ainda é inspiração de milhões de crentes, mas cuja principal Igreja se encontra tão distantemente colocada destes fundamentos.

E ouço dizer que é a interpretação humana, que tem justificado a versão adoptada pela Igreja Católica dos ensinamentos de Cristo, e que me parece, muito convenientemente, mais virada para a componente material do que para a componente espiritual, para o engrandecimento da estrutura e não para o engrandecimento das almas que a compõem.

Ouço dizer, porque apesar de católica por baptismo, há muito que não pratico os rituais, há muito que nada me dizem as orações decoradas e não sentidas, os cestos passados de mão em mão, as homilias herméticas e, sobretudo, os comportamentos instituídos de perseguição e repressão, da exultação de um Deus castigador e irascível, tão diferentes daqueles exemplos de serenidade, doçura e abnegação que os Escritos revelam.

Retrospectivando, vem-me, inevitavelmente, à memória uma série de exemplos denegridores da imagem dos Homens, sempre eles, que conduziram os destinos da Igreja, apavorados e histéricos para manter as suas posições, esbracejando em todas as direcções para tudo controlar, através de meios de uma eficácia impressionante, como a Santíssima Inquisição, e a hábil utilização do Sacramento da Confissão como primoroso meio de denúncia.

Recordo, a influência no poder legislativo e executivo de países, numa mistura explosiva entre crenças políticas e crenças espirituais, já na Idade Moderna, já na altura em que os hereges e a caça às bruxas tinham passado de moda.

Reflicto, sobre a forma abismalmente diferente em que Homens da mesma profissão de fé, consagram as suas vidas a Deus, escolhendo, uns, cada vez menos, a pobreza e o isolamento dos Mosteiros, outros, a opulência das vestes, dos anéis beijados, dos ventres dilatados, expondo o sucesso obtido na tal profissão escolhida, sempre prontos a apontar o dedo, a recriminar comportamentos e, uma vez mais, a castigar o comum dos mortais, de que eles já não fazem parte, seja com excomunhões, seja com frases.

E pondero, e procuro, e não encontro, um só representante desta Igreja, a mais poderosa do Mundo, que use a sua influência e os infindáveis recursos de que ela dispõe, para lutar corpo a corpo com os podres sociais, em vez de esgrimir argumentos, apoiados em interpretações subjectivas de Palavras santificadas.

E lembro-me dos Missionários. Não daqueles a quem só importa evangelizar, mas dos outros, os que se internam por Infernos adentro, partilhando, ombro a ombro, de mãos vazias, nuas e braços abertos, a verdadeira Caridade perante a Miséria, a verdadeira Abnegação, perante a Doença, a verdadeira Compaixão perante a Guerra, a verdadeira Comunhão com e Submissão a, valores pregados por um Cristo, filho de um Deus Pai, que nos tornou todos Irmãos.

E no fim desta reflexão, apesar de tudo, espero que ela seja, mais uma vez, mais um motivo, nem que seja o único, para a reunião de famílias e para tréguas que ressuscitem a esperança entre os seres humanos.


Boa Páscoa para todos!

sexta-feira, 3 de abril de 2009

quebra-tolas, mentiras, verdades e outras soluções


Após uma participação massiva e várias interpretações às frases que por aqui deixei, eis as soluções para o quebra-tolas do passado dia 1 de Abril.
Basta clicar no link e ver as verdades, as mentiras e as explicações:

1 - A cor do céu é azul / mentira

2 - Nasci no dia do meu primeiro nome /verdade
Nota: O meu 'primeiro nome' refere-se ao que estava decidido ser-me atribuído pelos meus pais, por ter nascido neste dia, mas que, entretanto, foi alterado, para o nome com que, efectivamente, fui registada.

3 - Não existe qualquer relação entre Sócrates e Freeport / verdade

4 - Sou mais nova 14 dias do que a Patti / mentira;
Nota: Sou mais velha 14 dias, ou não seria sagitariana

5 - José Rodrigues dos Santos e a filha de um capitão tiveram um romance / verdade

6 - O primeiro blog onde eu comentei foi o 'Crónicas do Rochedo' / mentira

7 - O Mar Morto ficou assim já depois de Cristo / verdade
Nota: A designação de Mar Morto só passou a ser utilizada a partir do século II, depois de Cristo

8 - Nunca pilotei um avião, mas já comecei a tirar o brevet / mentira, as duas afirmações
Nota: Nunca pensei em tirar o brevet, embora isso faça parte da minha cultura familiar, mas a verdade é que JÁ PILOTEI UM AVIÃO, durante cerca de 10 minutos, numa aventura que um dia contarei por aqui...

9 - O quarto da prima, de Luís de Camões, está referido no Canto VI d'Os Lusíadas / verso 38 - verdade

10 - No princípio dos meus bisavós está um concelho verbo / verdade

Ninguém acertou na totalidade das mentiras nem das verdades, sendo que, devo destacar o mérito de alguns pela perspicácia com que descobriram as ratoeiras e outros, ainda, que apesar de pouco acertarem, encararam este desafio com um enorme 'je ne sais quoi', apostando no humor e na imaginação das explicações, fazendo-me rir pela simpatia que tiveram em dar respostas, para as quais foi necessário dispender algum do vosso precioso tempo.
Só por isso, a todos os participantes deste desafio, fica o prémio abaixo, que agradeço seja levado para os vossos cantos, não esquecendo que este, é absolutamente pessoal e instransmissível.
Obrigado a todos, de Si para si......


quarta-feira, 1 de abril de 2009

atrevam-se, atrevam-se a participar!!!!!!!


Cumprindo a promessa de responder a um desafio que já correu a Blogolândia inteira, para lá dos limites do Reino de Aquém e de Além Mar do Blogobairro, e torcendo um pouco o bico ao prego que as prega, apeteceu-me, sei lá eu bem porquê, logo hoje, atirar para aqui uma data de mentiras, sobre variados temas, apelando à vossa perspicácia e cultura geral para descobrir quais são, e, portanto, quantas são, sendo que, como quem manda neste blog sou eu, para cada resposta apontada, verdadeira ou falsa, terão ainda que apresentar o porquê, ou, pelo menos, o raciocínio dedutivo.

Aqui estão:

1 - A cor do céu é azul;

2 - Nasci no dia do meu primeiro nome;

3 - Não existe qualquer relação entre Sócrates e Freeport;

4 - Sou mais nova 14 dias do que a Patti;

5 - José Rodrigues dos Santos e a filha de um capitão tiveram um romance;

6 - O primeiro blog onde eu comentei foi o 'Crónicas do Rochedo' ;

7 - O Mar Morto ficou assim já depois de Cristo;

8 - Nunca pilotei um avião, mas já comecei a tirar o brevet;

9 - O quarto da prima, de Luís de Camões, está referido no Canto VI d'Os Lusíadas;

10 - No princípio dos meus bisavós está um concelho verbo;

Querida Vizinhança, 'alea jacta est', pelo que deverão responder o mais rapidamente possível, de forma a poder publicar as vossas respostas até à próxima 6ª feira.
E não se esqueçam das regras, repito, juntando a devida justificação para a resposta que escolherem.
A participação está limitada a uma resposta por vizinho e podem ir abrindo as vossas casas, porque, daqui a pouco vos vou bater à porta, com o 'mouleskine' para as recolher.
Depois, é só dar asas ao vosso instinto feminino/masculino, 'et voilá', tudo se torna 'elementary, my dear Watson'!

Três....dois....um........PARTIDA!!!!!
(e, claro, SIGA A RUSGA!!!)