segunda-feira, 21 de setembro de 2009

(re)confortos # 1


Ausência e presença são sinónimos;
apenas transferem de uma para outra a existência do sujeito.

(até já!)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

o dedo na ferida



Quem me segue desde o início, mesmo antes de ter um blog meu, sabe que em finais de 2007, por questões profissionais, estive uma semana em Shenzhen, uma cidade do sudoeste da China, fronteiriça com Hong-Kong e povoada por 14 milhões de habitantes.
O que este vídeo revela, infelizmente, não é ficção. Assisti a cenas quase iguais, apenas com uma diferença: a idosa e a estudante que as protagonizaram não faziam qualquer tipo de triagem; sentadas sobre os calcanhares, no meio da passagem aérea em frente ao nosso Hotel, aproveitavam o crepúsculo para, com menos vergonha, inclinar o balde do lixo e de lá comer directamente.
Em ambas as situações, pedimos aos nossos anfitriões que esperassem um pouco para lhes podermos comprar comida. Recusaram educadamente, porque a polícia estaria demasiado perto. Coincidência ou não, nunca mais as vimos depois disso.
E, a este propósito, pergunto: que conclusões tirar sobre a comparação entre os hábitos dos povos chineses e portugueses, uns com uma tradição milenar de espírito de sacrifício colectivo e de trabalhadores altamente produtivos, outros com rendimentos mínimos, subsídios de desemprego e baixíssimos indíces de produtividade, perante a crise financeira que se abateu sobre o planeta?

Ah! E sugiro que, antes de responderem, se lembrem primeiro daquilo que ficou na travessa e no prato do vosso jantar de ontem...

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

o diário de maria emília




03 de Junho de 1964

Querido Diário,

Hoje, vai ser o meu dia. Sou madrinha de guerra do Laurentino e ele vai levar-me a jantar fora. Estou muito ansiosa, porque, mesmo sem o conhecer, acho que já estou apaixonada por aqueles versos, aquela maneira de escrever, que só poderá vir de um homem muito sensível. Vou usar aquele vestido de florinhas azuis que a Menina Odete me fez com o corte que comprei lá no Sr. António e até acho que nem vou levar os óculos. Quero que ele me veja tal como sou, mulher por inteiro e sem defeitos. Depois conto-te tudo, querido Diário, agora tenho que me ir arranjar.

Até logo!

Maria Emília


03 de Junho de 2009

Querido Diário,

Faz hoje, precisamente, 45 anos que escrevi aqui a minha última linha.
Daí para cá, não pude dar-te atenção.
Naquela noite em que fui jantar com o Laurentino, ele foi um pára-quedista que caiu aos trambolhões na minha vida, mas para quem olhei e soube, desde logo, que éramos um para o outro. Passei os 16 meses que lhe faltavam para cumprir a missão no Ultramar, a preparar o casamento, e, desde aí, só me fez feliz.
Logo no início, construiu-me uma vivenda, quase sozinho, no terreno que a Avó Nela me deixou; ia trabalhar para lá todos os dias, depois de vir da fábrica e só regressava altas horas da noite, coberto de cimento e cal, mas limpava sempre os pés antes de entrar e fez sempre questão de ser ele a varrer o rasto de branco que ficava no corredor até à casa de banho.
Insistiu que os meus pais viessem viver connosco e nunca se chateou com a minha mãe, mesmo quando ela era metediça nos nossos assuntos. Desculpou-a sempre e ainda lhe trazia ramos de flores, com versos escritos no cartão.
Sempre foi muito reservado e tímido, mas em nenhum ano se esqueceu das datas do nosso aniversário de namoro, do de casamento, do meu aniversário ou do dos sogros, adivinhando, quase telepaticamente, os nossos desejos secretos para prendas: com ele fui à Tailândia, a Paris e a Bora-Bora, recebi dezenas de caixas de bombons, abri centenas de garrafas de champanhe e até andei no Concorde.
Só tive pena de não ter tido filhos.
Hoje, escrevo para te dizer que o Laurentino já não está entre nós.
De há cerca de um ano a esta parte, começou a andar estranho, irritadiço, a transpirar muito e a acordar de noite com palpitações. Andámos de médico para médico, mas nenhum acertava e quando se descobriu, ninguém estava preparado para receber aquela notícia.
É que ao fim de 45 anos, descobri que, afinal, estava casada com uma Laurentina e que ela estava era na menopausa.
Só aí comecei a sentir falta dos meus óculos.


quinta-feira, 10 de setembro de 2009

terá sido???


Estou sentada em frente ao computador, a alinhavar umas linhas para publicar neste meu caderno de apontamentos, que já se tornou um apêndice dos meus dedos. A janela aberta, neste final de tarde, traz-me o ritmo de tambores africanos, viajados pelo Brasil e tocados em Portugal.
É estranho como se misturam no ar.
É estranho como são familiares ao chilreio dos melros, ao curru rouco das pombas, ao ladrar de um cão na quinta.
Nunca lá entrei, mas sei: todos, rapazes e raparigas, vestidos de branco, em roupas soltas, a formar um círculo, onde, par a par se junta no centro, mesclando bailado com luta, estratégias de distracção, com movimentos acrobáticos.
E cânticos.
Ao som dos tantans.
A rufar, debaixo de dedos que se atraem por outras peles.
Capoeira, chamam-lhe.
E eu, estranhamente, gosto daquele som que me embala e sacode.
Terá sido assim que os Portugueses se apaixonaram pelas terras de além-mar?

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

aldeia do coração

(antes de mais, façam o favor de clicar no play ali do lado esquerdo)


Bininha e João, levantaram-se bem cedo, que isto de tratar da terra, não é quando se quer, é quando ela chama por nós. De bata por cima da roupa velha e galochas calçadas, desceram a inclinação que separa o chão da casa do do cultivo, um com a fouce, outro com a enxada, um com os baldes dos restos, outro com as águas das lavagens, escarnecendo, à descarada, daqueles pobres coitados das cidades, que têm que ser ensinados com anúncios de TV, apelos de actores das novelas e montes de papeis impressos com cores diferentes, a fazer aquilo que, intuitivamente eles sempre fizeram, porque no campo nada se desaproveita. Acompanho-os.

Mas quais ecopontos, quais quê, senhores?? E eu lá preciso de amarelos e verdes para saber o que hei-de fazer ao lixo?? Eles que venham cá e vejam como a gente faz e pode ser é que aprendam alguma coisa! - abana a cabeça e, pelo caminho, já arrancou algumas ervas do jardim, daquelas que mirram as que se querem que cresçam.

Abre o galinheiro, para aliviar a primeira carga. O galaró convencido, ainda tenta um avanço à macho, do género, tu-queres-ver-que-esta-me-vai-roubar-alguma-das-minhas-pitas??, mas rapidamente muda de ideias quando vê no chão bocados de pão, gomos de cebola, cascas de cenoura, arroz rapado dos pratos, caroços de fruta e uma malga de sopa de feijão vermelho, a que se atira furiosamente, esganado de cobiça. Anda lá, come tu agora, que logo hás-de ser tu a dar de comer, enche o papo até domingo, que a cabidela já está prometida aos que chegam de França. Ele não a ouviu. Ainda bem, riu-se, ou a carne ainda ficava rija!

A segunda carga, que leva os moletes duros em calhau, cascas de banana, maçãs apodrecidas, laranjas azedas e talos de penca mordidos de caracois, já está a ser reclamada há muito. Negrito, um burro alto como um cavalo, zurra desde que a Bininha estrondou a porta lá em cima, ansioso por meter a pata nos petiscos que aí vinham. Não sejas bruto, burro, daqui a nada comes balde e tudo, apre! Feliz, o asno fecha os olhos e abre os lábios, a mostrar aqueles enormes dentes brancos no terroque, terroque, terroque das pedras-pão, placidamente mastigadas como se fossem frescas, a sair quentinhas do forno a lenha.

Já mais aliviada, nos braços que trazia pesados, Bininha dá passagem à gata Mimi, antes que ainda tropece nesta traçada de siamesa, que a segue para todo o lado, e que tem mais de cão do que de gato, e observa João a deitar as águas gordurosas das lavagens para cima do monte do adubo. São restos de matos, silvas, picos, urzes e giestas, roubadas aos perigos da languidez da chama, humedecidas e apodrecidas, perfumadamente nauseabundas, como um bom fertilizante que se preze. Uma vigorosa mexidela com a enxada verifica que ainda não ferve, logo não está pronto. Há-de chegar a hora.

De fouce em punho, ela geme os ossos das cruzes quando se verga para apanhar erva fresca para os coelhos e a pontada lembra-lhe outras aflições de que já não sofre desde que se mudou para ali, definitivamente. A asma ficou no Porto, na casa que a via ter ataques diários e corridas desenfreadas para o hospital em busca de oxigénio. Menos mal, as dores nas costas passam quando, logo, à tardinha, tomar um duche bem quente, que agora ainda é preciso cavar a batata, a ver se não lhe dá o arejo, regar as couves, apanhar as vagens, tirar uma alface e alguns tomates para fazer a salada do almoço e, por falar nisso, agora me lembro, Ó Zé!!, Zééé!!! - Diga, minha mãe? - respondem de lá de cima - Não te esqueças de botar mais duas mãos de arroz na panela, que os cães precisam de comer!!

E é bem preciso, sabe?? É que os quatro latagões não se sustentam só a ração. A Estrela, o Douro, o Faísca e o Ice esgadanham-se todos pela comida de lume, os ossos, as carnes, os restos que a gente separa nos pratos; foram criados a comer o mesmo que a gente e como os tratamos bem, andam sempre a abandoná-los aí à porta, cães e gatos, coitadinhos dos bichos. - E então quantos são agora os gatos, ao todo? - pergunto - São quatro também. Quer dizer, eram seis, mas o 'seu' Pipocas, os caçadores mataram-no e a Piglet também deve ter sido envenenada, que nunca mais apareceu. Isto é uma maldade, pregam-nos cada desgosto!



















- Biiina, Biiiiiina, olha que hoje já não regas antes do almoço! - 'Atão porquê, João?? - Porque a mina vai rasa e vou ter que ir buscar a água do tanque. Nos próximos dias, já sabes, lavai a louça à mão e aproveitai a água para as descargas, até ver se chove!

Não choveu. Mas ficou frio. Um frio seco, que a casa de pedra reclamou como seu, próprio, único, a abençoar-nos com o gozo de acender a lareira, apesar do Maio já tardio, libertando a moleza indolente instalada nos corpos enrolados em mantas, embalados por ronronares hipnóticos de Mimis, Sanchos, Zebrinhas e Manchinhas, que, de pelos colados a peles, nos anunciam que, ali, na aldeia que não é, mas que gosto de chamar minha, onde há sempre que fazer, também há tempo e sossego para preguiçar, desejando-se, a cada minuto, que o fim de semana não acabe.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

(Si)lly season ads # 2

Remédios santos para as tentações do Demo


E valha-nos a Nossa Senhora!!

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

vacances

E eu lembro-me de o ver passar, a desconchavar-se todo, a traseira da direita, mais do que a da esquerda, vergado pelo peso da bagagem. Ao ritmo sacudido de uma suspensão que já conhecera melhores dias, fazia a estrada sobre o alcatrão remendado, e quase nunca renovado, catapum sobre um buraco, upa sobre uma lomba, vê lá, Maria do Sameiro, se não te oubliaste de rien, hãn, as braçadeiras que os putos usaram no tanque, o passe-vite dos pastéis de bacalhau, mais a cadeira da tua mãe, la méchante, também é de manias, mas vão bem uma com a outra, a poltrona com a pastelona, ehehehe, oh, lá, lá, percebeste, ó Maria do Sameiro, esta que eu disse, da poltrona com a pastelona, percebeste?? Ó Sertório Manuel, deixa lá a minha mãe em paz e olha-me mas é para a route, morcão, que estes buracos dão-me cabo das cruzes, e eu quero lá chegar ainda de dia, que levo aqui uma roupita para estender, 'tás a écoutar-me? Alors, se é para dizer des conneries, cala-te lá homem, o Ivandro Christophe já adormeceu, e tu, Sandrina Marise, deixa-te de bétises e de catar macacos do nariz, qu'inda levas uma lamparina é já a seguir, compriste??
Iam assim a viagem toda, trazidos pelo mês de Agosto e levados pelo espreitar do Setembro; trinta dias, para compensar trezentos e trinta e cinco mais, de saudades, passados no chantier das obras e nas casas das Madames, a lavar moquettes e a servir déjeuners, a juntar todos os tostões para construir em Portugal uma maison trés jolie, com janelas de cortinados floridos e telhados angulosos; trinta dias que terminavam sempre, para estes heróis de outra guerra, na péage de Vilar Formoso, com o olho gordo do Guarda-Fiscal, para os figos, os presuntos e os garrafões de azeite e de vinho, fotografias da família, transformadas em sabores da terra.


Republicação para Fábrica de Letras