Luena não apareceu.
ela, que chegava sempre primeiro do que a sopa, não apareceu.
a carrinha estacionada no mesmo lugar, com os faróis apontados para o mesmo beco sujo, a mala aberta, mostrando os cobertores e as marmitas, aparentavam uma noite como as outras. os mesmos olhares vazios de esperança, em corpos consumidos pelo vício, perscrutavam os gestos de todos os dias, apenas na espera de uma refeição quente.
excepto por Luena.
Galega, autómata, de colher numa mão e tigelas noutra, distribuia as refeições, as frases, as recomendações dadas vezes sem conta. mantinha a mesma postura de todos os dias, mas o olhar teimava em fugir-lhe para a direita, para o lado do candeeiro, onde devia estar Luena. abriu uma excepção e a boca para perguntar por ela. os olhares cruzaram-se, os ombros encolheram-se numa expressão cúmplice e ela percebeu.
guardou os materiais mecanicamente, olhou para o candeeiro uma última vez e virou as costas. ia a meio do caminho, quando uma lágrima lhe rolou pela face vincada. voltou para trás, amaldiçoando-se interiormente pelo que ia fazer. estacionou o carro à toa, num chiar de travões que sobressaltou os que já se tinham acomodado nos cartões para dormir e saiu, batendo com a porta. no beco sujo, o cheiro a urina, sangue e excrementos empestava o ar, os detritos que ia pisando, seringas, meias colheres queimadas, cachimbos, frascos de comprimidos e de xarope, estalavam sob o peso das suas botas. lá à frente, debaixo de trapos, restos dos cobertores azuis que ela tinha emprestado e cartões de papelão, adivinhava-se a forma de um corpo inerte. já chorava descontroladamente quando conseguiu destapar a cabeça de Luena e ver que ela mal respirava. O que é que tu fizeste, preta estúpida? O que é que raios tu foste fazer?? Galega segurava os ombros de Luena, soerguendo-a do chão húmido e batia-lhe na cara tentando reanimá-la. os olhos revirados não lhe davam grande esperança, mas não desistia e sacudia-a com mais força. gritou por ajuda, berrou pelos que todos os dias vinham até si sem chamar, mas de nada valeu. na memória, confundiam-se as imagens de há três anos, com as imagens daquele momento, e à boca vinha-lhe o mesmo amargo de revolta, enquanto encostava ao seu peito o cabelo emaranhado e pegajoso de Luena. voltou a deitá-la com cuidado. despiu o casaco, enrolou-o num cilindro e colocou-o por debaixo da cabeça dela, limpou-lhe com as mangas a espuma que lhe saía pela boca e tomou-lhe o pulso naquelas veias tão sumidas. o coração batia. fraco, tímido e irregular, anunciando que em breve era capaz de desistir. a respiração superficial também nada de bom agourava e era provável que aquele corpo frágil não resistisse por muito tempo.
Galega soluçava, revivendo passo a passo os acontecimentos de há três anos: a filha, a ida para a universidade a 300 quilómetros de distância, o namorado, a gravidez indesejada, o aborto espontâneo, a depressão, o abandono e as drogas que a atiraram em convulsões para o chão do quarto alugado de onde nunca regressou. a sua vida desde então, vendendo pedaço a pedaço das suas memórias, delapidando as recordações, para comprar marmitas, tigelas, um fogão a lenha, largo, para aguentar o peso das panelas em que diariamente fazia a sopa que distribuia e cobertores. muitos cobertores azuis. para cobrir as misérias e aquecer sacos de ossos que deambulavam pelos becos.
sem saber o que fazer mais, Galega aconchegou o corpo em cima do papelão, cruzou-lhe o braços sobre o peito e agarrando por uma ponta arrastou-o até à entrada do beco.
não tinha intimidade nenhuma com as prostitutas que por ali proliferavam a não ser em casos raros de crise do negócio, novatas à experiência a que os chulos tinham de avaliar a saída e outros acasos que as empurrassem para a baixeza de mendigar um caldo com pão.
mesmo assim, não se importou e de ar decidido dirigiu-se à que ocupava a esquina contrária à do candeeiro de Luena.
Chama o 112 pelo teu telemóvel e dá-me uma ajuda, que sózinha não posso.
Ó Galega, vai à merda, que a mim não me dás ordens, 'tás a ver? E desampara-me a loja, qu'inda assustas a clientela. Este lugar é meu, baza.
e dando um jeito à alça da mala com lantejoulas, afastou-se, empinando o traseiro apertado nos minúsculos calções justos e bamboleando os quadris do alto dos sete centímetros de tacão.
furiosa, Galega rangeu os dentes, murmurando uma praga, mordeu os lábios para calar mais um soluço e abateu-se com o peso da indiferença que reconheceu nas outras mulheres à venda.
voltou ao beco.
Luena lá estava, na mesma posição, de braços cruzados sobre o peito, acomodada para dormir para sempre, na cama de cartão que lhe amparava as tripes. foi ao carro, tirou dois cobertores azuis, dos novos, e cobriu-a com cuidado, com carinho, até com ternura. deu-lhe um beijo na cara negra e fria, passou-lhe as mãos pelos cabelos hirtos, pelo pescoço magro, onde já não se distinguiam os batimentos cardíacos. Adeus Luena, a tua vida já não é madrasta. que te saiba bem e descansa.
13 comentários:
Pois...deixas-te-me assim ...sem palavras..
Já me tem perguntado se tenho medo de alguma coisa, pois disto tenho medo, não por mim, pelos meus filhos...tentamos ensinar-lhes os bons caminhos mas as escolhas serão deles e ás vezes os atalhos são traiçoeiros...
Tenho a certeza de que a 'Galega' também fez o melhor que soube e pode,esta foi a forma que encontrou de fazer o seu luto, ajudar os outros..
A Afectividade é sem dúvida muito bonita.
Quando não se tem pudor em conviver com a miséria e lá está um velho ditado que diz nem tudo se pegar, tudo se lava, menos as más linguas.
Enorme prova de humanidade dessa sra. Galega!
Triste fim que cada vez mais se perpetua, todos os dias à nossa frente. E na rua é o salve-se quem puder. Se falta um encolhem-se ombros, vira-se a cara e só se deseja que o próximo não sejam eles.
Ou não.
Si,
Esta é a triste realidade que nos assola, principalmente nas grandes cidades, e que nos ameaça.
Este teu texto, retratando uma realidade tão fria, mas ao mesmo tempo tão doce no trato, não pode deixar ninguém indiferente.
Parabéns.
Tretices grandes para Si.
http://tretas-da-vida.blogs.sapo.pt/
Retrato crú de um cenário que se multiplica, a que não podemos ficar indiferentes.
Gostei especilamente do tom cromático que as suas palavras conferem a uma história de tons sépia.
De dentro para fora,
Os filhos e as suas escolhas são sempre uma incógnita das nossas vidas que nos podem inchar de orgulho ou secar de desgosto. E há tantas "Galegas" por aí....
Prendinhas
António,
No caso da "Galega" foi assim que ela conseguiu lidar com a dor.
Prendinhas
Patti,
É isso mesmo. Desistem e pronto.
Prendinhas arejadas
Tretoso,
Obrigado.
Mas não se iluda. Todos optamos pela indiferença, se sentimos que dessa realidade surge uma ameaça.
E nem precisa de ser nas ruas sujas...
Prendinhas da treta
Carlos,
É crua, sim. E tão próxima de nós que nem a queremos ver.
Quanto aos tons, apenas o azul dos cobertores, porque todo o resto é cinza ou negro, como a pele de Luena...
Prendinhas
Uma história que consome quem a escreve, quem a lê e quem a vive.
Uma realidade que todos sabem existir, mas que poucos vêem. Alguém me disse um dia uma frase que me revoltou e nunca vou esquecer: A pobreza pega-se.
Deve ser por pensarem isso que tantos viram a cara.
Veludinhos azuis
E eu fico aqui a olhar e a pensar na porcaria de pessoa que sou.
Não tenho pena de mim, tenho verdadeiro ódio por ser tão egoísta.
Gi,
Não a conheço de lado nenhum, mas não acredito no que diz de si.
Só alguém que tenha os sentimentos no lugar poderá reagir assim.
Beijinhos.
Enviar um comentário