segunda-feira, 14 de setembro de 2009

o diário de maria emília




03 de Junho de 1964

Querido Diário,

Hoje, vai ser o meu dia. Sou madrinha de guerra do Laurentino e ele vai levar-me a jantar fora. Estou muito ansiosa, porque, mesmo sem o conhecer, acho que já estou apaixonada por aqueles versos, aquela maneira de escrever, que só poderá vir de um homem muito sensível. Vou usar aquele vestido de florinhas azuis que a Menina Odete me fez com o corte que comprei lá no Sr. António e até acho que nem vou levar os óculos. Quero que ele me veja tal como sou, mulher por inteiro e sem defeitos. Depois conto-te tudo, querido Diário, agora tenho que me ir arranjar.

Até logo!

Maria Emília


03 de Junho de 2009

Querido Diário,

Faz hoje, precisamente, 45 anos que escrevi aqui a minha última linha.
Daí para cá, não pude dar-te atenção.
Naquela noite em que fui jantar com o Laurentino, ele foi um pára-quedista que caiu aos trambolhões na minha vida, mas para quem olhei e soube, desde logo, que éramos um para o outro. Passei os 16 meses que lhe faltavam para cumprir a missão no Ultramar, a preparar o casamento, e, desde aí, só me fez feliz.
Logo no início, construiu-me uma vivenda, quase sozinho, no terreno que a Avó Nela me deixou; ia trabalhar para lá todos os dias, depois de vir da fábrica e só regressava altas horas da noite, coberto de cimento e cal, mas limpava sempre os pés antes de entrar e fez sempre questão de ser ele a varrer o rasto de branco que ficava no corredor até à casa de banho.
Insistiu que os meus pais viessem viver connosco e nunca se chateou com a minha mãe, mesmo quando ela era metediça nos nossos assuntos. Desculpou-a sempre e ainda lhe trazia ramos de flores, com versos escritos no cartão.
Sempre foi muito reservado e tímido, mas em nenhum ano se esqueceu das datas do nosso aniversário de namoro, do de casamento, do meu aniversário ou do dos sogros, adivinhando, quase telepaticamente, os nossos desejos secretos para prendas: com ele fui à Tailândia, a Paris e a Bora-Bora, recebi dezenas de caixas de bombons, abri centenas de garrafas de champanhe e até andei no Concorde.
Só tive pena de não ter tido filhos.
Hoje, escrevo para te dizer que o Laurentino já não está entre nós.
De há cerca de um ano a esta parte, começou a andar estranho, irritadiço, a transpirar muito e a acordar de noite com palpitações. Andámos de médico para médico, mas nenhum acertava e quando se descobriu, ninguém estava preparado para receber aquela notícia.
É que ao fim de 45 anos, descobri que, afinal, estava casada com uma Laurentina e que ela estava era na menopausa.
Só aí comecei a sentir falta dos meus óculos.


14 comentários:

continuando assim... disse...

loool

estava a ser tão bonito.... :) :)

bj teresa

Patti disse...

Ai Si, que mázinha, coitadinha da Emilinha!
Olhe que bem podia colocar aqui uma foto do Laurentino(a) Pára-quedista. Depois de ler tudo, fiquei cheia de curiosidade de sabê-lo enquanto jovem.

pedro oliveira disse...

Só tu par nos contares destas histórias.Coitada da Emília,mas com tanta sensibilidade par a sogra,era de desconfiar,lol.
bj e boa semana

Gi disse...

A felicidade não tem sexo!

Justine disse...

EStou pasmada! Mas então...falta de óculos??? E o... ai balhamedeus(como diz a mdsol), qu'até me custa a crer! Mas se vem no diário...

Rosa dos Ventos disse...

Como gosto muito de livros policiais vi logo que a falta de óculos era indiciadora de uma fatalidade que, felizmente, demorou 45 anos a abater-se sobre a heroína! :-))
Diverti-me com estas 2 páginas de um diário bem ficcionado!

Abraço

Pitanga Doce disse...

Distraída a menina Emilia. Distraída e cegueta. hehehe

bom dia Si

Unknown disse...

Ele a falta d'óculos tem coisas,,,
Afinal,com todos esses cuidados e gentilezas,bem que a Emilinha deveria ter desconfiado que havia "moiro (a) na costa. Ó Si,o pior foi a Emília abrir-se no diário,pois de outro modo ninguém saberia,nem eu...

Violeta disse...

Si... um tão bom princípio para deixares a emilinha mal vista.
bjs

ANTONIO SARAMAGO disse...

Eu tive muitas Madrinha de Guerra, a maioria sem as conhecer pessoalmente e outras que acabámos por ter caso.
Era uma enorme força que tinha para uma ajuda sem limites.
Abençoadas as Madrinhas!!!

cristina ribeiro disse...

Belo conto, aquele com que nos brindou, Si.

paulofski disse...

Ai ai Maria Emilia... as diabas das dióptrias ou seria o tal do Alzeimer a chatear?

Anónimo disse...

Eu sempre disse que as histórias de amor só têm finais felizes nos contos de fadas.

fugidia disse...

lol

:-D