segunda-feira, 7 de setembro de 2009

aldeia do coração

(antes de mais, façam o favor de clicar no play ali do lado esquerdo)


Bininha e João, levantaram-se bem cedo, que isto de tratar da terra, não é quando se quer, é quando ela chama por nós. De bata por cima da roupa velha e galochas calçadas, desceram a inclinação que separa o chão da casa do do cultivo, um com a fouce, outro com a enxada, um com os baldes dos restos, outro com as águas das lavagens, escarnecendo, à descarada, daqueles pobres coitados das cidades, que têm que ser ensinados com anúncios de TV, apelos de actores das novelas e montes de papeis impressos com cores diferentes, a fazer aquilo que, intuitivamente eles sempre fizeram, porque no campo nada se desaproveita. Acompanho-os.

Mas quais ecopontos, quais quê, senhores?? E eu lá preciso de amarelos e verdes para saber o que hei-de fazer ao lixo?? Eles que venham cá e vejam como a gente faz e pode ser é que aprendam alguma coisa! - abana a cabeça e, pelo caminho, já arrancou algumas ervas do jardim, daquelas que mirram as que se querem que cresçam.

Abre o galinheiro, para aliviar a primeira carga. O galaró convencido, ainda tenta um avanço à macho, do género, tu-queres-ver-que-esta-me-vai-roubar-alguma-das-minhas-pitas??, mas rapidamente muda de ideias quando vê no chão bocados de pão, gomos de cebola, cascas de cenoura, arroz rapado dos pratos, caroços de fruta e uma malga de sopa de feijão vermelho, a que se atira furiosamente, esganado de cobiça. Anda lá, come tu agora, que logo hás-de ser tu a dar de comer, enche o papo até domingo, que a cabidela já está prometida aos que chegam de França. Ele não a ouviu. Ainda bem, riu-se, ou a carne ainda ficava rija!

A segunda carga, que leva os moletes duros em calhau, cascas de banana, maçãs apodrecidas, laranjas azedas e talos de penca mordidos de caracois, já está a ser reclamada há muito. Negrito, um burro alto como um cavalo, zurra desde que a Bininha estrondou a porta lá em cima, ansioso por meter a pata nos petiscos que aí vinham. Não sejas bruto, burro, daqui a nada comes balde e tudo, apre! Feliz, o asno fecha os olhos e abre os lábios, a mostrar aqueles enormes dentes brancos no terroque, terroque, terroque das pedras-pão, placidamente mastigadas como se fossem frescas, a sair quentinhas do forno a lenha.

Já mais aliviada, nos braços que trazia pesados, Bininha dá passagem à gata Mimi, antes que ainda tropece nesta traçada de siamesa, que a segue para todo o lado, e que tem mais de cão do que de gato, e observa João a deitar as águas gordurosas das lavagens para cima do monte do adubo. São restos de matos, silvas, picos, urzes e giestas, roubadas aos perigos da languidez da chama, humedecidas e apodrecidas, perfumadamente nauseabundas, como um bom fertilizante que se preze. Uma vigorosa mexidela com a enxada verifica que ainda não ferve, logo não está pronto. Há-de chegar a hora.

De fouce em punho, ela geme os ossos das cruzes quando se verga para apanhar erva fresca para os coelhos e a pontada lembra-lhe outras aflições de que já não sofre desde que se mudou para ali, definitivamente. A asma ficou no Porto, na casa que a via ter ataques diários e corridas desenfreadas para o hospital em busca de oxigénio. Menos mal, as dores nas costas passam quando, logo, à tardinha, tomar um duche bem quente, que agora ainda é preciso cavar a batata, a ver se não lhe dá o arejo, regar as couves, apanhar as vagens, tirar uma alface e alguns tomates para fazer a salada do almoço e, por falar nisso, agora me lembro, Ó Zé!!, Zééé!!! - Diga, minha mãe? - respondem de lá de cima - Não te esqueças de botar mais duas mãos de arroz na panela, que os cães precisam de comer!!

E é bem preciso, sabe?? É que os quatro latagões não se sustentam só a ração. A Estrela, o Douro, o Faísca e o Ice esgadanham-se todos pela comida de lume, os ossos, as carnes, os restos que a gente separa nos pratos; foram criados a comer o mesmo que a gente e como os tratamos bem, andam sempre a abandoná-los aí à porta, cães e gatos, coitadinhos dos bichos. - E então quantos são agora os gatos, ao todo? - pergunto - São quatro também. Quer dizer, eram seis, mas o 'seu' Pipocas, os caçadores mataram-no e a Piglet também deve ter sido envenenada, que nunca mais apareceu. Isto é uma maldade, pregam-nos cada desgosto!



















- Biiina, Biiiiiina, olha que hoje já não regas antes do almoço! - 'Atão porquê, João?? - Porque a mina vai rasa e vou ter que ir buscar a água do tanque. Nos próximos dias, já sabes, lavai a louça à mão e aproveitai a água para as descargas, até ver se chove!

Não choveu. Mas ficou frio. Um frio seco, que a casa de pedra reclamou como seu, próprio, único, a abençoar-nos com o gozo de acender a lareira, apesar do Maio já tardio, libertando a moleza indolente instalada nos corpos enrolados em mantas, embalados por ronronares hipnóticos de Mimis, Sanchos, Zebrinhas e Manchinhas, que, de pelos colados a peles, nos anunciam que, ali, na aldeia que não é, mas que gosto de chamar minha, onde há sempre que fazer, também há tempo e sossego para preguiçar, desejando-se, a cada minuto, que o fim de semana não acabe.

12 comentários:

Dulce Braga disse...

Tal qual filho adotado é muito mais dos pais adotivos que dos progenitores, assim tão amada por você é muito mais sua, que de muitos que lá nasceram!:))

De dentro pra fora disse...

Que bom ... pena que já é segunda feira...

pedro oliveira disse...

Boa semana!
bjs

ANTONIO SARAMAGO disse...

Haverá coisa melhor do que viver no campo?
O lixo aproveita-se para fazer estrume para fortalecer a terra , desta nascem as coisinhas puras para comer.
Há falta de alguma higiene?
Sempre se ouviu dizer que o que entra á boca e sai ao c....não faz mal nenhum.

Gi disse...

Ó, Si, vou ter que ler isto com calma. Hoje o meu PIN e o meu PUK não carburam (há-de perceber quando foir ao meu blogue; não me consigo concentrar.
Boa semana.

anniehall disse...

Si tenho pena de a desiludir , mas gente como esta que aqui descreve vai rareando e os que ficaram pertencem aos mais gastadores:)

Unknown disse...

Pois,Si,bela tela pintada a letras.
Parabéns.Em todo o caso,muita labuta, canseira e saúde exigem tais actividades desenvolvidas,embora com amor!

Violeta disse...

mas que delícia de post.
Não tenho mesmo palavras. Lindo!

Luísa A. disse...

Gostei imenso de ler, Si. É uma realidade tão diferente da minha realidade urbana. Mas fez-me lembrar de umas férias que fiz, há uns anos, no Trás-os-Montes «profundo», onde as coisas eram exactamente assim: tudo se aproveitava e tudo se reciclava na Natureza. Era uma vida muito pura. :-)

Justine disse...

Os gestos essenciais, telúricos. A vivência com a natureza e os animais, em harmonia pacífica.
Ond fica essa Pasárgada??
(e o relato está delicioso:))

Rosa dos Ventos disse...

No campo o lixo não é lixo, é fonte de energia numa contínua renovação, porque, de facto, nada se perde...

Abraço

Filoxera disse...

Ai, estou a ver que voltarei depois. Não saboreio nada destes lindos amigos cheia de sono...
Até breve.