Logótipo Emergência Infantil
Vem este post a propósito de um outro que li há uns dias,
aqui, sobre a injustiça que existe neste mundo, em relação a crianças que são obrigadas a suportar fome, maus tratos e trabalhos escravos em que esgotam as suas frágeis forças.
Discutiu-se então, entre os comentadores, o pouco de que servia chorar, se nada fazemos de activo para alterar as coisas, quer seja pela inércia, quer seja pela indiferença que sentimos quando não nos toca a nós, ou pela que simplesmente escolhemos sentir, fechando os olhos e olhando para o outro lado. As emoções reveladas foram intensas, como sempre que fazemos um auto-exame de consciência e concluímos que poderíamos ter feito muito mais.
Isso fez-me lembrar que fui uma privilegiada, por, há uns anos atrás, ter tido a oportunidade de fazer algo por crianças desprotegidas, abandonadas e negligenciadas.
Não foi muito, nem heróico, nem tão pouco muito visível, mas foi alguma coisa.
Aproveitando umas férias no Algarve, aceitei o convite para visitar uma instituição fabulosa, dirigida por uma pessoa fabulosa, que gere uma equipa fantástica:
O Refúgio Aboim Ascensão, em Faro, o primeiro centro de acolhimento em Portugal a activar a
Emergência Infantil, cujo objectivo é prestar cuidados imediatos a crianças em risco, num projecto criado pelo Dr. Luís Villas-Boas, e que mereceu, em 1998, a distinção do
"Princess Diana Award of the Children and Family's Foundation".Chegámos tarde, ao final da tarde de um dia de calor intenso, vindos directamente da praia e com a pele ainda cheia de salitre dos banhos que tomáramos. A informalidade tinha-nos sido assegurada pelo próprio director do Refúgio, também ele pouco amigo da rigidez de indumentárias e do pouco que ela significa para crianças carenciadas.
Entrando pela porta principal, fomos, de imediato, conduzidos ao seu gabinete para nos ser explicada a origem da obra e das intenções pré-definidas pela família que lhe deu nome, casa e recursos iniciais, num discurso não estudado, não memorizado, e sobretudo sentido por quem viveu cada momento do caminhar do projecto. Em destaque, na sala, a fotografia de uma Princesa de Gales sorridente encabeçava o valioso Prémio e responsabilizava as atitudes dos seus detentores, mas por mais que eu tentasse, não poderia imaginar o que iria ver.
Estranhamente, num local onde as crianças são acolhidas até aos 5 anos, o silêncio reinava, e as vozes tendiam a baixar, enquanto percorríamos os corredores da vivenda adaptada para o efeito e apreciávamos as condições que tinha para a difícil tarefa de garantir
"o direito a um colo": salas coloridas de terapia da fala, com computadores e softwares dedicados, espaços amplos e espelhados para a terapia ocupacional, uma piscina interior de água aquecida a paineis solares, ligada a um sofisticado sistema de controlo do pH e cloro, uma cozinha enorme, completamente equipada em aço inox, de brilho bem esfregado, um frigorífico de duas portas, cheiinho até cima de frutas, legumes frescos e iogurtes
Danone, fraldários solarengos a abarrotar de todos os melhores produtos da
Dodot e de montes de roupinhas de algodão de todos os tamanhos, cheirosas, cheias de côr, lindas, meticulosamente dobradas e passadas a ferro.
Mas e as crianças? Onde estavam elas??
Pé ante pé, fomos descobrir a razão do silêncio e das vozes abafadas. Era já hora de dormir e as inúmeras crianças aí albergadas, abandonavam-se nos braços do Morfeu em berços de grades de madeira envernizada, arrebitando os tutus naquele cheio de fraldas que vinca as regueifinhas, cobertas de chambrinhos leves pelo calor de Agosto, de faces coradas e quentes a que apetecia encher de beijos.
Os únicos que se mantinham ainda acordados eram bébés de poucos meses que necessitavam de cuidados especiais pelas suas particulares condições de saúde: um croata, abandonado por turistas viciados em heroína, ainda mantinha ciclos de abstinência a que era preciso atentar, dois portugueses seropositivos e um alemão com dificuldades na digestão de proteínas, retinham a total atenção de 3 profissionais do Refúgio, que vigiam, 24 sobre 24 horas, cada uma daquelas inocências.
Extasiados com aquela imagem, e perante a necessidade de manter o sossego daquele sono, pensávamos terminar a visita por ali, quando de um outro corredor, se começaram a ouvir vozes distintas e infantis, murmúrios que iam aumentando de tom, misturados com alguns risinhos e baques surdos. Intrigadíssimos, seguimos o percurso até à origem, atrás do Dr. Villas Boas. Num dormitório de camaratas, onde, supostamente, já deviam estar no mundo dos sonhos os cerca de 10 a 12 miúdos de 4 e 5 anos, o reboliço era enorme, com crianças em pijama a pinchar em cima das camas, a pular de umas para as outras, a fazerem fitinhas, gracinhas e outras macaquices, perante o olhar benevolente e condescendente da vigilante.
Sem qualquer tipo de embaraço, nem tão pouco de estranheza, foi-nos dito que as crianças abandonadas, à mercê de adultos que baseiam as suas decisões de adopção em olhos azuis ou pestanas grandes, tendem a chamar a atenção, para melhor demonstrar as suas capacidades, sempre que pressentem uma visita.
Entre os risos e as pantomimas, e apenas com a luz vinda do corredor, debrucei-me sobre uma das camas para apreciar o quadro cheio de côr, personalizado pelos próprios, que exibia o nome de cada um. De imediato, dois braços estendidos me agarraram o pescoço e içaram um corpo ágil que se prendeu à minha cintura, cruzando os pés nas minhas costas. Colada a mim, a Daniela exigiu e deu muitos beijinhos, abraçou-me com força, enrolou e desenrolou com os deditos os laços do meu biquini, tratou-me por tu, quis saber o meu nome e de onde eu vinha e só a promessa de que a manteria no meu colo, permitiu que eu cedesse aos insistentes pedidos do Tomé, um negrito hiperactivo, para que também pegasse nele e lhe desse a mesma atenção.
Ao meu lado, as outras mulheres que me acompanharam nessa visita, também distribuiam festas, mimos, sorrisos e colos e em todas nós os nós nas gargantas apertavam com tanta força, que os olhos acabaram por deixar de fazer barragem às lágrimas, confundindo aquelas cabeças para quem o choro não serve para demonstrar felicidade.
Foi um caos para devolver a tranquilidade àquele dormitório, adiantada que estava já a hora do sono, excitadas que estavam aquelas crianças, desejosas que estávamos nós por prolongar aqueles momentos.
E foi só ao despedir-me definitivamente daquela casa que a tal sensação de um incrível privilégio me tocou.
Não lhes dei comida, porque não tinham fome, não lhes dei roupas porque estavam bem vestidas e agasalhadas, não lhes dei medicamentos, porque não estavam doentes, nem tão pouco lhes dei dinheiro, porque nem saberiam o que fazer com ele.
Só lhes dei colo. E era só disso que precisavam.
Nota: O Refúgio Aboim Ascensão é uma entidade sem fins lucrativos que sobrevive graças aos acordos com a Segurança Social e à boa vontade de empresas de todo o país que fazem doações dos seus produtos, como é o caso da Dodot, da Danone e mais recentemente da BP que forneceu combustível para as viaturas e gás para a cozinha do Refúgio, suficiente para mais de dois anos. As referências feitas neste post a marcas específicas, são, por isso, verdadeiras e pretenderam demonstrar que tudo o que é feito naquela casa tem como objectivo o que qualquer pai ou mãe deseja: dar o melhor dos melhores para os seus filhos.