quinta-feira, 23 de setembro de 2010

manel feijoeiro e a tragédia das leguminosas


Manel Feijoeiro, todos os dias se levantava de madrugada, para aconchegar nas sacas de chita, os seus preciosos feijões mágicos que levava para a banca da Praça.
Só ele lhes conhecia o dom especial que possuíam, em crescerem na mesa do pobre, para lhes reforçar o sustento, manterem-se iguais na do remediado, que os dividia irmãmente, e encolherem na mesa do rico, abafados que ficavam pela abundância de outros pratos.
Digamos que eram feijões com vontade própria, portanto.
Tanta, que era logo na venda que os papeis se invertiam: não era o freguês que escolhia os feijões, mas os feijões que escolhiam o freguês, saltando sozinhos para o cartucho de papel pardo que Manel segurava, enquanto olhavam intensamente, com o seu olhinho hipnótico, para os olhos das clientes, colocando-as num transe instantâneo, que logo passava, quando já todos tinham marchado lá para dentro.

Os mais sabidolas e reguilas eram os manteiga: de trato fino e dengoso, escolhiam sempre as donas de casa mais jovens, ansiosas por surpreender e agradar aos recém-maridos com os seus dotes culinários, macios e tenros que ficavam em qualquer receita; mais sérios e recatados, os fradinhos, davam-se bem com viúvas, beatas e solteiras eternas, de hálitos desleixados, dando-se, por isso, ao luxo de exigir a companhia da cebola crua, mal se sentiam cozidos; os rajados, ou catarinos, preferiam as criadas de servir, por razões óbvias de classe, logo eles, a quem Manel nunca conseguiu dominar aquela ânsia de poder entrar nas casas abastadas pela porta dos fundos; os brancos só iam para o cartucho das senhoras da alta roda, que os usavam na delicada confecção das sobremesas, transformados em glicémicos pastéis, e os vermelhos sentiam-se importantes era com as mulheres do povo, que lhes davam longos banhos, e eles, inchados, podiam olhar de soslaio para as gordas chouriças e as hortaliças tronchudas do quintal.

Ora, houve um dia, em que um feijão Vermelho se apaixonou por uma feijoca Branca, jeitosa que ela era, de curvinhas tão refeitas e olhinho tão oval. Destinada para a mesa dos ricos, como ela estava, logo o murmurinho se levantou, pois se há coisa de que os feijões não gostam é de misturas, e o Vermelho, exclamavam os brancos, haveria era de alinhar no cartucho da Senhora Quitas, uma velha cozinheira de mão cheia que trabalhava numa cantina.
Patati, patatá, rebéubéu, trálálá, a discussão estalou, e mesmo com a mediação dos fradinhos e os chiliques dos manteigas, o que é certo é que, brancos e vermelhos, chegaram a vias de facto, deixando a banca do Manel Feijoeiro na maior das confusões, e a ele, furioso da vida, por lhe estragarem a venda, que nem mais um saltou para o cartucho.
Chegado a casa, pôs tudo em pratos limpos e não mais consentiu insurgências, vontades próprias, nem tão pouco escolhas, a feijões mal educados e mal agradecidos, pelas muitas horas de bom trato que lhes dispensara. Desanimado, informou-os de que o negócio tinha ido por água abaixo, que ele abalaria para o Luxemburgo, logo que os papéis fossem tratados, e que todos os seus feijões seriam entregues ao Pingo Doce mais próximo.

Depois disso, Manel nunca mais foi o mesmo e a Praça também não.

Até porque, vários anos mais tarde, ainda muitos se recordariam de Vermelho e Branca, um par de feijões namorados, que, demolhados em lágrimas, pela paixão contrariada, tão deprimidos e inconsoláveis, viriam a precipitar-se, juntos, para o abismo do passe-vite mais próximo, protagonizando, assim, a mais profunda das tragédias leguminosas.

6 comentários:

Gi disse...

Então e o feijão preto, sua racista de meia-tigela? :D


PS.: Veja lá se comenta os amigos de vez em quando; pode-se deixar de blogar, mas nunca de comentar. :)

Eduardina disse...

Adorei a sua tão criativa história!

Tulipa Negra disse...

Até entre as leguminosas há preconceitos... :)
Gostei imenso da história, parabéns.
Beijinhos

paulofski disse...

Gi, parece que o feijão preto e o feijão verde não quiseram entrar na feijoada!

Justine disse...

Deliciosa estória! Encantadora de ironia e ternura!
Estou de barriga cheia:)))

Patti disse...

Ah e eu à espera do feijão verde!!!! Mas que imaginação Sôdona Si! Mais uma vez adorei.

Este texto dá um bocado de flatulência...