
Nas linhas brancas dos alinhavos, revia as prioridades da sua vida. A espaços regulares e muito direitos, esboçava os passos que dava em cada dia, primeiro com o giz, à laia de ensaio, depois com a tesoura que lhe definia os limites, a seguir com a agulha, que lhe juntava provisoriamente avessos e enviuzados para ver se se entendiam, e, só no fim, com a máquina de pedal, que casava definitivamente as decisões do figurino em ligar fazendas, entretelas, fitas de nastro, forros de cetim e ombreiras.
Jacinto era, portanto, um homem pacato e ponderado, filho único do único alfaiate dos Pousos, aldeia onde nascera 56 anos antes. Do pai, herdara a profissão e a loja, da mãe, o feitio à medida de qualquer moça casadoira que se quisesse perder naqueles olhos castanhos avelã, iguais aos galões que pregava nos fatos de linho.
Mas os anos foram passando, e nenhuma quis coser a sua vida à dele, nem ele nunca se encantou com os modelos da terra, julgados e bem medidos pela bitola que tinha dentro da cabeça. Os pais desapareceram e ele ficou, sózinho, fielmente unido às costuras da clientela.
Por alturas do Outono, precisamente quando o caixeiro-viajante andava numa lufa-lufa, no leva e traz das novidades da estação, chegou-lhe aos ouvidos que iria chegar, em breve, a filha emigrada dos donos da retrosaria, que tinha abalado para França logo em menininha. Recordava-se, muito vagamente, de uma cachopa de tranças bem apertadas em dois grandes laçarotes de cetim rosado, chuleado à mão nas pontas, para não desfiar, e do rosto, só conservava a imagem de dois botões negros e grandes, forrados com pestanas espessas.
Foi, por isso, com surpresa, que numa quinta-feira à tarde, viu passar uma figura alta, dentro de um vestido de algodão lilás, primorosamente debruado a nastro de florinhas minúsculas, decote quadrado e manga três quartos. As pinças do corpete, perfeitamente alinhadas com o encaixe do peito generoso, sobressaíam elegância, e a saia rodada, em godés de guarda-chuva, tinha a baínha logo abaixo do joelho, para deixar à mostra a medida certa de umas pernas encamisadas numas meias de seda transparente e sapatos a condizer.
Quase em câmara lenta, desfilou defronte da sua loja, com um sorriso estampado na cara, em contraponto ao recorte liso de um par de lábios aveludados, estacou à porta e deixou sair um gritinho de alegria. Jacintô!!, exclamou, estás na mesma!! Não te lembrras de mim?? Sou a Suzete, crriatura, o que eu chorrei por toi, quando me fui, chérrri!!
Quase em câmara lenta, desfilou defronte da sua loja, com um sorriso estampado na cara, em contraponto ao recorte liso de um par de lábios aveludados, estacou à porta e deixou sair um gritinho de alegria. Jacintô!!, exclamou, estás na mesma!! Não te lembrras de mim?? Sou a Suzete, crriatura, o que eu chorrei por toi, quando me fui, chérrri!!
Naquele momento, Jacinto sentiu-se como que picado por milhares de alfinetes, atordoado como se o ferro de engomar lhe tivesse caído em cima da cabeça! Como pudera esquecer? Como pudera não lembrar a carteira de escola atrás da dela, e o que ele apreciava o ponto cheio das letras 'S.M.' bordadas no seu bibe? Suzete Marrazes....há quanto tempo!!!
Rapidamente, ela pô-lo a par da sua vida, como modista de luxo das Madames em Paris, pondo em prática o que aprendera na Mestra que a acolheu à chegada de Portugal. Falou-lhe da riqueza dos tecidos, das cores que lhe traziam do estrangeiro, das linhas de seda, das máquinas de corte que inaugurara no novo atelier, de tudo, tudo e também das saudades que lhe ficaram no peito ao despedir-se dos Pousos. Voltava para ficar, queria assentar os vincos da sua existência.
Escusado será dizer, que não tardou muito a que Jacinto e Suzete juntassem os trapinhos e unissem as suas vidas, afinal, eram um para o outro como colchetes e nunca mais se desapertaram, caminhando lado a lado pelas pregas da vida em felicidade reforçada em cada ponto.
Escusado será dizer, que não tardou muito a que Jacinto e Suzete juntassem os trapinhos e unissem as suas vidas, afinal, eram um para o outro como colchetes e nunca mais se desapertaram, caminhando lado a lado pelas pregas da vida em felicidade reforçada em cada ponto.
Perguntei-lhes como quereriam que terminasse de contar a sua história.
Foi-me dito que lhe desse um fecho de correr.
(Post publicado em 18 de Fevereiro de 2009)
Em fundo, Chris Norman - Needles and Pins
4 comentários:
História encantadora, Si. Com laivos de "Sabrina" e um leve perfume a anos 60, E muito, muito bem contada:))
Parabéns pelo texto e obrigada pelo prazer de lê-lo!
Ó Si,que história mais bonita!Tanto romantismo nem cabe agora.O certo é que o conteúdo muito ingénuo,é suportado por um tela onde as palavras encaixam entrecosidas com mãozidas de fada num verdadeiro patchwork e tornam a prosa uma delícia.
Muito bem desenhada e costurada esta história, de acordo com um figurino romântico!
Espero que o fecho de correr nunca tenha encravado! ;-))
Adorei o apelido da menina Suzete...
Abraço
E com um fecho de correr rematou esta história de costura, tão bem cerzida ao longo destes elegantes parágrafos...
Muito bonito.
Um beijo.
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