Exercício: Era uma vez...
Era uma vez uma Raínha belíssima que, bordando no bastidor, junto a uma janela de ébano, se picou inadvertidamente. Três gotas do seu sangue caíram em cima da neve do beiral e ela desejou ter uma filha que fosse tão branca como esta, tão negra como a nobre madeira das portadas e tão rubra como o sangue que derramara. E assim foi. Branca de Neve nasceu com uma pele alva, cabelos de azeviche e uma boca vermelha que haveria de despertar ódios e amores profundos....
A pena caiu para a frente formando um imenso borrão de tinta, que se espalhou pelas fibras de papel de trapo. E aproveitando a sonolência do Escritor, a Protagonista escapuliu-se, deixando atrás de si pegadas minúsculas que se foram desvanecendo e encobrindo o seu rasto.
Só de madrugada deu pela sua falta. Depois de um ronco mais profundo que o despertou sobressaltado, tentou escrevê-la mas ela não apareceu, deixando-o a ele à beira de um ataque de nervos e às outras personagens num burburinho surdo de impaciência.
- Que falta de respeito! - dizia o Caçador que lhe haveria de poupar a vida
- Eu já sabia que isto ia acontecer! - sobrepunha a Madrasta-Feiticeira olhando as longas unhas - Eu é que deveria ser a protagonista e não uma criaturinha desinteressante daquelas!
- Nós nunca mais vamos conseguir terminar esta história, nunca mais... - vaticinava o Anão Resmungão, abanando a cabeça e cofiando a barba.
Irritado, o Escritor bateu com o punho na mesa e mandou-os calar. - Que mistério este! - desabafou - Precisava de a encontrar ou todo o seu esforço de criação teria sido inútil.
O Príncipe Perfeito ofereceu-se. Montado no seu alazão branco, arreado a dourados, partiria na direcção das pegadas desvanecidas, saindo pelo papel fora, num salto arriscado de várias frases, capa solta ao vento e coroa muito direita na loira cabeça.
Aterrou em cima de um livro poeirento e estacou, convencido de ter ouvido um ruído nas imediações. Decidiu segui-lo e percebeu que de lá de dentro vinham vozes alteradas, altercações, canções desafinadas, gargalhadas, palmas e assobios. Cada vez mais intrigado, embrenhou-se por uma frecha das páginas carcomidas, descobrindo, por entre casulos vazios de traças, um caminho secreto que o haveria de levar quase até à lombada. Habituado que estava a viver em palácios faiscantes, teve alguma dificuldade em se adaptar à escuridão daquele covil e, mais ainda, em acreditar naquilo que os seus olhos iam vendo.
O vinho, despejado para dentro de grosseiras canecas de barro, corria a rodos, servido por gnomos submissos vestidos apenas com aventais de carneira; no piano, de saia arregaçada até à liga e sapatinhos de cristal espalhados pelo chão, Cinderela ensaiava uns acordes com os dedos dos pés, entre duas baforadas na comprida boquilha; esvoaçando sem controlo e visivelmente alterada na sua capacidade de raciocínio, a Fada-Madrinha espalhava feitiços aleatórios pela ampla sala, onde já pululavam coelhos encartolados, grasnavam gansos de oiro e coaxavam sapos reais. Rapunzel, soltava risinhos histéricos, divertida a fazer tropeçar os gnomos que se esgueiravam por entre as mesas com louças encasteladas, laçando-os como bezerros nas suas próprias tranças; e ao canto, iluminada pelo spot-light, Branca volteava-se sensualmente no varão, de body-verniz e botas-plataforma a condizer, lançando beijos em forma de coração a uma plateia ávida de lhe provar aqueles lábios encarnudos.
Acabara de se apoiar numa coluna, para se manter em cima das trémulas pernas e evitar sucumbir ao quase desmaio, quando Branca reparou nele. Calmamente, deslizou pelo varão, recolheu as notas que lhe estendiam, escondendo-as no decote, e saiu do palco bamboleante, pelo meio dos protestos cavernosos do seu maior fã, o Gigante Fi-Fó-Fum.
Sem rodeios nem desculpas, explicou ao Príncipe a razão da sua fuga: elas, as Protagonistas e Personagens Mágicas de Boa Índole dos Contos de Fadas, estavam saturadas de serem as boazinhas, as bonitinhas, as mártires da perfeição e das moralidades; e então aquilo de viverem felizes para sempre com o mesmo ricaço, deixava-as tolhidas para enfrentarem a eternidade, compelidas a cumprir apenas os destinos alheios.
Balbuciante e pouco convincente, ele ainda lhe falou dos deveres, dos compromissos assumidos, da dependência de outras personagens, da alma criativa do Escritor, mas Branca estava irredutível: saíra daquele filme para não mais voltar.
Desesperado, o Príncipe utilizou um último argumento. E então as crianças? Como ficariam elas se a magia não existisse nas suas vidas, se o bem não vencesse sempre o mal, e a felicidade fosse tão somente algo efémero?
Branca vacilou; afinal elas eram o seu ponto fraco. Suspirando resignada, aceitou regressar, mas com uma condição: a cada doze meses exactos, todas se voltariam a reunir naquele mesmo local, para viverem, por um dia, as suas próprias fantasias.
Pois desde aí, e caso nunca tenham reparado, há sempre uma altura no ano em que os pais deitam os filhos mais cedo e os filhos adormecem mais tarde, porque as histórias simplesmente não acontecem, excepto num livro poeirento e carcomido que nunca se deixou ler por ninguém.
23 comentários:
Uma sacudidela muito bem dada, sim senhora.E que o desejo da Branca se cumpra.
:)) É verdade sim, essa história, já tinha ouvido... este ano, parece que vão aparecer todas disfarçadas de vampiros que é o que está a dar... :) Gostei dessa reivindicação das personagens, afinal ser bonzinho toda a vida, é muito frustrante( quer dizer...deve ser, faço ideia... rrss)
Eu sempre desconfiei desses tempos livres, aquelas carinhas de anjo nunca me enganaram e ainda bem. Tão princesas como as outras; nós claro.
Olhe, e a letrinha miudinha, miudinha depois da liga da outra pudica, também se vê muito bem!
Continuo a achar uma parceria perfeita.A 1ª parte toda muito suave,ternurenta,a fazer-nos chorar de dor com as desventuras das pobres meninas bem-nascidas ,mas vítimas de madrastas preversas ou maldições de fadas más,e chorar de alegria com o final sempre feliz ao lado do herdeiro da coroa belo e perfeito.
A segunda parte que, encaixando perfeitamente,desmonta todo o paradigma e nos diverte à brava com o inesperado destino da personagem que foge ao autor e vai,livre,gozar a vidinha,para outro livro de histórias!
Parabéns
Não gostei.
ADOREI!!!!!!!!!!!!!
As duas histórias...
Parabéns
Si, levanta aí uma questão a que nunca procurei a resposta que gostaria de ter: qual terá sido o real impacto destas histórias na nossa formação. Porque nem todos os valores são os valores «certos», numa perspectiva cristã, por exemplo. Nomeadamente, o extremar do «bem» e do «mal, o tal maniqueísmo hoje tão fora de moda. E a ideia do príncipe perfeito e da felicidade eterna, não como algo que se pode ou deve procurar na vida, mas como um final que nos está garantido à partida, parece-me perigosíssima! Como já comentei na Patti, seria interessante reescrever essas histórias à luz dos dias de hoje. :-)
Com tanta coincidência no fabrico das histórias até parece haver telepatia.
Nota:no comentário anterior queria escrever "perverso",mas fugiu-me o dedo para o chinelo,e lá foi erro.
(Ou terá sido a tecla a pregar a partida voluntariamente?
Afinal, as mudanças acontecem até mesmo nas almas das cândidas princesas que, acompanhando a modernidade, querem também a tão decantada liberdade feminina! Exatamente como as mais simples mortais... Imaginou quantas mulheres sonham com isso? Com a coragem de poderem partir as amarras e viverem seus sonhos de liberdade???
Você e a Patti criaram textos incríveis, Si. Parabéns às duas.
Já li as duas histórias e o comentário é copy paste:
Será que ambas estiveram a ler ese magnífico livro que é "A Psicanálise dos Contos de Fadas?"
E já agora: o tema foi escolhido em homenagem à nossa Fada?
Carlos,
Eu não li de certeza, e, com esse título, duvido que a Patti o tenha feito, mas só ela poderá responder.
Quanto à homenagem à Fada, não fora o tema estar escolhido há mais de um mês e bem que o poderia ser.
Tudo o que possa favorecer o regresso desta vizinha ao blogobairro é um prazer fazer. :))))
Ó Si, vamos lá por partes... este texto está magnífico, mas entre o seu texto e o da presidentA, é como ter-se juntado a fome à vontade de comer. A Patti fala de libertinagem e a menina arremessa-nos com uma foto destas da Branca de Neve?... um homem não é de ferro... nem um anjo...
(Muito bom!)
Como já disse na Patti convinha porem uma bolinha no canto do écran, quando vos dá para desatinar.
Parece que uma das fantasias dos homens é veram as parceiras com ar diáfano, mas vestidas assim.Manias...
Gostei muito da volta final: as crianças, sempre elas lá conseguiram demover a Branca de Neve.
O Príncipe, malandro como todos os homens arranjou um grande argumento.
Adorei as duas histórias.
Beijinhos de mim para Si
Muito para a "FRENTEX" Sra. SI!!!
Vivá subversão! Vivá imaginação! Brancas Independentes ao poder!!
Delirante...delirei:))
Ora bem, viva a evolução do imaginário. Estereótipos não.
Os valores transmitem-se pelo exemplo nos comportamentos e nunca se é só "bom ou exclusivamente" "mau".
Pois olhe que o livro é excelente, Si. Faz a leitura psicanalítica dos mais conhecidos contos de fadas, de uma forma interessantíssima.
Mas claro que estava a brincar, como devem ter percebido.Só que as vossas belíssimas histórias fizeram-me lembrar o livro.
São histórias bem humoradas, fábulas modernas para tempos modernos, que bem poderiam expressar a realidade que conhecemos, mas as coisas nunca são o que parecem...
Gostei muito Si.
Volto aqui e só para deixar um bocadinho do meu algum Cavalheirismo ao querer desejar-te um BOM FDS.
Eu acho que a Branca foi à procura da maçã reineta, a única capaz de com a sua acidez lhe fazer um belo assado.
Ó carago eu não posso ler o texto todo. São quase cinco horas e a Net vai fechar. Olha, que raio de Branca de Neve é essa? Sexy a rapariga hein? Na segunda eu volto com mais calma.
Vou tentar ir a Patti.
beijos do lado de cá e de cá mesmo
Moderninho, né?...rsssss....
Questionar e revolucionar!..por que não?:)
Gostei muito desta narrativa.
Razões:
- Está muito bem escrita e com um enredo consistente;
- É-nos apresentada uma Branca cheia de fantasias mas com um sentido funcional de enorme responsabilidade: assegurar a manutenção das fantasias das crianças, uma vez que seja, por ano. Isso é muito bom por resolver a questão da dança.
(Há um autor português, Jose Sasportes que já editou dois livros fantásticos:
- «OS DIAS CONTADOS»
- «VIAGEM DE MARCOLINA AO ÚLTIMO DUELO DE CASANOVA»
Esta obras começam onde livros publicados terminaram.
Imperdíveis.
O começode «OS DIAS CONTADOS» é soberbo.
Saudações
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